São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
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Um ordenador insano

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

E então, seguindo a menina que, cansada de ler livros sem diálogos nem ilustrações, perseguia um estranhíssimo coelho branco que lhe chamara a atenção menos por murmurar para si mesmo "Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Vou chegar muito atrasado!" do que pelo modo compulsivo com que olhava o relógio que tirara do bolso do colete, o reverendo Charles Lutwige Dodgson, professor de matemática, estudioso de lógica e fotógrafo amador, entrou na toca do supracitado bicho (se cabia ou não dentro dela não vem exatamente ao caso) e começou a cair, cair... algo que, obviamente, se visto do lado oposto de nosso planeta esférico, equivale a subir, subir...
Sua queda-ascensão lógico-linguística se configurou primeiro (em termos ontológicos, não necessariamente cronológicos) no seu próprio pseudonomeamento ou auto-rebatismo trans-idiomático-palindrômico: transpondo para o latim Charles Lutwidge, ele obteve (aproximadamente) Carolus Ludovicus que, por sua vez, invertido e retransposto (aproximadamente, de novo) ao inglês resultou em: Lewis Carroll. Persona? Máscara? Heterônimo fernandopessoano "avant-la-lettre"?
Não obrigatoriamente. Carroll não deixou jamais de ser Dodgson e os trabalhos deste -"papers" sobre matemática e lógica, fotografias vitorianamente convencionais de adultos e, segundo alguns críticos, fotos extremamente originais de meninas, não raro nuas (dizem que ele adorava todas as crianças, exceto os meninos)- não se contrapõem (embora tampouco realmente complementem ou explique) às obras daquele. Não há personalidade clivada e, muito menos, dupla ou múltiplas personalidades, nada de médico x monstro. Há sim, no caso de Carroll, uma personalidade diferente, talvez nova, certamente estranha, estranhíssima, quase inatingível.
Dodgson-Carroll escreveu muito e de tudo, mas são três as suas obras verdadeiramente clássicas, todas elas assinadas com o segundo nome: os dois livros "alicianos" (aliciadores de menores e de maiores) "Aventuras de Alice no País das Maravilhas", "Através do Espelho e o que Alice Encontrou Lá" (ambos disponíveis entre nós na ótima tradução de Sebastião Uchoa Leite e na bela adaptação de Nicolau Sevcenko) e sua balada épica "The Hunting of the Snark" (traduzida inspiradamente para o português por Alvaro A. Antunes como "A Caça ao Turpente"). O restante do que escreveu serve antes para se tentar entender como e por que o autor fez o que fez de melhor.
Carroll (1832-98) viveu toda a sua vida adulta na Inglaterra vitoriana. Professor e pregador (mau pregador, devido à timidez e à gagueira: note-se que o estilo de seu contemporâneo e também tímido primo espiritual, Machado de Assis, já foi outrora chamado de gago), ele passou discretamente pelo mundo, como convém a um "gentleman" britânico, mas, como lhe convém ainda mais tipicamente, ele tinha lá suas manias, sobretudo a de ordem, na qual era verdadeiramente obsessivo (classificava tudo, diagramava de antemão o fechamento de um pacote, escrevia aos correios sugerindo-lhes como melhorar seus regulamentos).
Não é demais, porém, afirmar que seu amor à ordem, seu horror ao caos tornaram-se nele, mais que uma simples mania ridícula, talvez o princípio criativo/imaginativo central. Pois a linguagem é um sistema de ordem (embora potencialmente desordeiro, caógeno) e a lógica é outro -e é da combinação de ambos (ampliando uma colocação do crítico Michael Holquist) que nascem tanto Alice quanto o Turpente.
O enxame crítico ao redor da obra em questão foi apenas marginalmente menor. Não houve uma vertente dos últimos cem anos que, por intermédio de algum praticante ou porta-voz, não tenha eleito as "Alices" ou o "Turpente" como sua prova-dos-nove. E assim, a menina que mergulhou na toca do coelho branco que tinha um relógio no bolso de seu colete, a menina que desafiou gente tão temível como a Rainha de Copas, cuja frase favorita era "Cortem-lhe a cabeça", a menina que já tinha visto um gato sem sorriso, mas, nunca antes, um sorriso sem gato, entrou também do mundo das maravilhas do existencialismo, do estruturalismo, da psicanálise, do marxismo, do desconstrutivismo, de Jung, da Escola de Frankfurt, do dr. Lacan..., onde foi esmiuçada por filósofos, médicos, lógicos, místicos e deus sabe quem mais, saindo, no entanto, sempre do outro lado do espelho.
Assim, se a proverbial guerra nuclear destruir todas as bibliotecas (e filmotecas etc.) do planeta, deixando incólumes apenas as três obras de Lewis Carroll e o que se escreveu sobre elas, ainda assim nosso pesquisador futuro, pós-apocalíptico, poderá, com esse material, reconstruir fidedignamente todas as principais discussões literárias, culturais e ideológicas do presente século.
Isso não se deve somente ao caráter precursor de uma obra que parece frequentemente ser contemporânea de Joyce, Kafka, Pessoa e Borges, pois, se há algo de que a modernidade está cheia, é de precursores -que remontam, aliás, ao princípio dos tempos (Borges explica: todo autor cria seus próprios precursores; a modernidade também).
E, embora Carroll fosse um adepto da fotografia, uma tecnologia, lembremos, muito mais revolucionária em meados do século passado do que hoje uma informática que, provavelmente, só é tão cultuada entre nós devido aos atrasos acarretados pelo provincianismo corrupto da lei da informática, sua modernidade nada tem a ver com isso -ela está, isto sim, mais que aos materiais, ligada aos procedimentos e, como a inteligência e seu autoquestionamento, começa no cérebro (não o eletrônico, mas o humano). É para lá também que, no seu eterno-retorno e com o sorriso-sem-gato do gato de Cheshire, ela volta.

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