São Paulo, segunda-feira, 29 de abril de 1996
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Lillian e o papa

JOSUÉ MACHADO

Com seu tom solene, sincopado e levemente marcial, Lillian Wite Fibe anunciou pela TV à noite: "Hoje o presidente Fernando Henrique Cardoso foi comunicado da visita do papa ao Brasil".
"Foi comunicado da visita"? No "Jornal Nacional"? O texto lido dos jornais de TV, principalmente o "Nacional", costuma ser bom e bem-escrito, a não ser por bobagens como "récorde" em vez do nacionalizado recorde, que tem de rimar em português com "acorde".
Uma surra como essa na regência do verbo "comunicar" soa estranho. Verdade que às vezes se apanham maltratos dessa natureza em jornais por aí: "Os deputados foram comunicados de que o pleito deles será atendido". "O prefeito Maluf foi comunicado de que o ministério está no papo." "O governador foi comunicado do massacre dos sem-terra..."
Em todos esses casos o infeliz verbo comunicar foi utilizado indevidamente com a regência e o significado de "avisar", "informar", "cientificar". Isso não fica bem para um jornal de respeito, sempre tão bem-comportado e otimista como o "JN".
O fato simples em relação à regência de comunicar é o seguinte: comunica-se algo "a" alguém. Comunicar, portanto, é transitivo direto para coisa e indireto para pessoa; ele rejeita preposição para coisa e exige o "a" para pessoa.
Isso significa que o presidente não pode ser "comunicado de" coisa nenhuma, porque esse verbo não funciona assim. Pelo menos de acordo com a língua oficial, que os jornais procuram usar.
O presidente pode ser avisado de algo, informado de ou sobre algo, cientificado de alguma coisa, advertido de que a coisa vai bem, muito bem.
No sentido de fazer saber, participar, transmitir uma informação a alguém, comunicar só se entende com a preposição "a". Jamais se comunica alguém "de" alguma coisa ou "sobre" alguma coisa.
"O presidente comunicou ao povo a intenção de passar pelo menos seis meses por ano no Brasil."
Por isso Lillian teria dito sincopadamente melhor (por que ela fala aos pulinhos?): "O presidente foi informado de que o papa tentará encontrá-lo em Brasília com a ajuda do bom Deus".
Problema mortal
Disse mais a Lillian noutro dia sobre a tragédia da hemodiálise de Caruaru: "O problema que matou os pacientes em Caruaru estava na água".
O problema matou alguém? É mesmo? Problemas matam?
O agente mortal não terá sido a toxina liberada por algas encontradas na água não tratada? A causa maior não terá sido a esculhambação na área da saúde e na área social?
Problemas talvez não matem, mas costumam gerar aflições que às vezes matam. É só lembrar o problema da terra. As palavras, no entanto, podem matar a notícia. Ou a mortificada língua.

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