São Paulo, terça-feira, 30 de abril de 1996
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Shura Cherkassky tem piano maior do que a própria música

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Há dois modos de caminhar por uma galeria: o crítico e o ideal. O crítico, estranhamente, é também o mais cordial, mais amistoso, mais tolerante. Deleita-se com as pequenas trivialidades bonitas da arte... Mas então vêm os dias de uma ânsia feroz -as solenes festas religiosas do intelecto- quando... nada, exceto o melhor -o melhor do melhor- nos causa enfado. Nestas horas, somos aristocratas incondicionais do gosto."
São palavras do pintor Teobaldo, na história "A Madona do Futuro", de Henry James. Elas definem não só os dois modos de andar por uma galeria, mas virtualmente tudo na vida: o afeto consciente com que se vive mais uma hora, ou um dia; como se escolhe uma palavra, um charuto ou um pianista.
Morto há três meses, aos 84 anos, Shura Cherkassky, em suas últimas décadas, foi uma lenda viva entre os pianistas. Num século que não se cansa de apresentar novos talentos, em que Martha Argerich (aluna de Cherkassky) já parece, hoje, a avó de Evgeny Kissin (seu mais provável sucessor), ele foi o músico dos músicos, a terceira estrela de um triunvirato russo, com Horowitz e Sviatoslav Richter.
Mais próximo, talvez, de Arturo Benedetti Michelangeli, mas consideravelmente menos nobre e mais expansivo, Cherkassky é um pianista de humor ideal, o artista incondicional do piano, que, nas suas mãos, é um instrumento maior que a própria música.
Em associação com a BBC londrina, a gravadora Decca vem lançando, desde o ano passado, uma série de gravações de Shura Cherkassky ao vivo. Este volume, o oitavo, está dedicado às variações, com obras interpretadas em vários concertos, de 1983 a 1986.
O compositor romântico Mendelssohn (1809-1847) costumava dizer que a música não era vaga, como queria Kant, mas "precisa demais para as palavras".
Seu "Prelúdio", op. 35/1 -recentemente gravado também por Murray Perahia, num CD com os Concertos de Mendelssohn para a Sony- é na verdade mais uma "canção sem palavras", que vem se alojar para sempre no cérebro, com a força de uma memória rara. Cherkassky é, de agora em diante, seu tradutor inevitável.
"Tradução" é a palavra adequada, também, para a "Toccata, Adagio e Fuga" em dó maior, de Bach (1685-1750), reescrita para piano no final do século passado, por Ferruccio Busoni.
Imprevisível no prelúdio, comoventemente perdido em si mesmo no Adagio, e fantasticamente grandioso na Fuga, Shura Cherkassky é o mais heterodoxo dos bachianos, auto-elevado à companhia de Glenn Gould e Horowitz.
Na sequência do disco, ele interpreta o segundo livro das "Variações sobre um Tema de Paganini", de Brahms, as "Variações", op. 19, de Tchaikovski, e as "Variações sobre um Tema de Corelli", de Rachmaninov.
Últimas obras escritas para piano solo pelo compositor, em 31, as "Variações Corelli" são quase um embaraço para os musicólogos, que não sabem o que fazer de um compositor como Rachmaninov.
Historicamente "irrelevante", avesso à vanguarda e ao experimentalismo, Rachmaninov permanece uma das vozes do século, e as "Variações" são um testamento -lacônico, cético, melancólico- dessa presença.
A Decca promete um volume 9 de "Live" até o fim do ano. A palavra "live", no caso, é uma triste ironia. Mas ninguém aceita a outra opção, frente aos registros e à nossa memória, ainda tão viva, de um dos grandes gênios da música.

Disco: Shura Cherkassky Live Vol. 8 - Variações
Artista: Shura Cherkassky
Lançamento: Decca

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