São Paulo, terça-feira, 30 de abril de 1996
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Riocentro, 15 anos

MARIA CELINA D'ARAUJO; CELSO CASTRO

Para os militares, reabrir a discussão implicaria reconhecer que o capitão e o sargento não foram os únicos culpados
MARIA CELINA D'ARAUJO e CELSO CASTRO
Ensina o dito popular que quem diz uma mentira diz sete. Ou seja, a mentira, com pernas curtas, só se mantém com outras mentiras. Identificar verdade e mentira é uma questão germinal na formação daquilo que nos qualifica como humanos. O caso do Riocentro, contudo, parece ter sido arquitetado e encoberto por quem menosprezou os dilemas da alma humana e até mesmo a sabedoria popular.
Na noite de 30 de abril de 1981, um show de música realizado no Riocentro, em homenagem ao Dia do Trabalho, com a presença de cerca de 20 mil pessoas, quase foi palco do maior atentado terrorista da história brasileira. No estacionamento, dentro de um carro particular com placa fria, uma bomba explodiu no colo de um sargento e o matou. A seu lado, um capitão ferido sobreviveu (e ainda está na ativa).
Meia hora depois, outra bomba explodiu na casa de força. Embora os dois militares estivessem em trajes civis, eram da ativa do Exército e serviam no DOI-Codi, unidade que se notabilizou, durante o regime militar, pela prática de métodos violentos e ilegais no combate à subversão.
O sargento foi enterrado com honras militares, e o comandante do 1º Exército segurou uma das alças do caixão. Dois meses mais tarde, o IPM instaurado concluiu que os dois foram vítimas de um atentado terrorista, de autoria não-estabelecida. Sem apontar autores, o IPM foi arquivado.
Desde então, a versão oficial vem sendo considerada uma farsa, e todas as evidências levantadas pela imprensa e pela OAB apontam nessa direção. Ficou claro, no primeiro momento, que os dois militares não eram vítimas e sim autores de um atentado que não se concretizou em função de um "acidente de trabalho".
Falhas grosseiras do inquérito foram também apontadas, em detalhes, pelo almirante Júlio de Sá Bierrenbach, à época ministro do STM e voto vencido em uma oposição corajosa à versão oficial. A partir de então, novos dados e depoimentos vêm corroborando o que já se sabia desde o início. Mesmo assim, autoridades militares, particularmente do Exército, continuaram a tratar o episódio como caso encerrado e qualquer tentativa de reabri-lo como revanchismo ou exploração política.
Para os militares, reabrir a discussão sobre o Riocentro implicaria, em primeiro lugar, reconhecer que o capitão e o sargento não foram os únicos culpados. Há fortes indícios que apontam para o envolvimento de outras pessoas da comunidade de informações do 1º Exército no planejamento e execução do atentado. Lembre-se ainda que o Riocentro foi precedido por dezenas de atentados terroristas de direita a alvos civis, alguns com vítimas, nunca devidamente apurados.
A postura dos chefes militares escolhendo o caminho, aparentemente mais vantajoso, da mentira fez com que uma minoria irresponsável se sobrepusesse à maioria, transformando a imagem e a honra da instituição militar nas grandes vítimas do Riocentro.
Honra, noção muito cara aos militares, remete a atributos de coragem, dignidade e honestidade. O que se viu em relação ao Riocentro foi o oposto: não se assumiu ou apurou responsabilidades; em nome de um falso espírito de corpo, protegeram-se criminosos; conscientemente, cometeu-se a severa transgressão, prevista nos regulamentos militares, de "faltar à verdade".
Quinze anos se passaram e o Exército de hoje sofre com baixos salários, orçamentos reduzidos, falta de definição clara de seu papel e baixo prestígio social da profissão. A grande maioria dos militares, principalmente as novas gerações, sofre ainda com a herança de episódios como esse, nos quais uma minoria de inescrupulosos comprometeu a corporação.
A anistia é de 1979 e estabeleceu a impunibilidade dos atos ocorridos até aquela data. O crime do Riocentro é de 1981 e ainda não prescreveu, como apressadamente alegaram os que querem enterrar o assunto.
Por tudo isso, pedir a reabertura do caso não é ato de revanchismo. A verdade seria, afinal, o caminho mais curto para fazer com que Exército e nação voltassem a ficar mais próximos.

Maria Celina D'Araujo, 45, é professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (RJ).

Celso Castro, 32, é doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (RJ).

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