São Paulo, terça-feira, 30 de abril de 1996
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Boa-fé e terras indígenas

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

A árvore se conhece pelos seus frutos. Quaisquer que tenham sido as intenções do governo quando promulgou, em janeiro, o decreto que muda a sistemática de regulamentação de terras indígenas, os resultados até agora foram calamitosos. Cabe ao governo tentar estancar o desastre.
Historiemos os fatos: no último ano, o ministro da Justiça, Nelson Jobim, persuadiu o presidente da República a substituir o decreto que regulamentava a demarcação de terras indígenas. Até então, qualquer pessoa que se sentisse lesada em seus direitos podia reclamar na Justiça.
A mudança consistiria em introduzir essa discussão (o "contestatório") também no próprio processo administrativo. O novo procedimento seria retroativo a todas as demarcações de terras que não estivessem registradas: pelo novo decreto, cerca de 160 áreas, inclusive muitas já homologadas pelo presidente da República, estariam passíveis de revisão!
O principal argumento do ministro era de que corriam no Supremo Tribunal Federal três ações para declarar a inconstitucionalidade da demarcação de áreas indígenas baseada na ausência do contestatório nos procedimentos administrativos. Se o STF aceitasse essa tese, todas as áreas indígenas demarcadas após a nova Constituição estariam ameaçadas. O argumento repousava na convicção do ministro de que o STF estava inclinado a julgar inconstitucionais os procedimentos de demarcação então vigentes.
Ora, o ministro Jobim, quando deputado federal e enquanto advogado, havia escrito um parecer, a pedido do governo do Pará, contestando terras indígenas desse Estado. Nesse parecer, sustentava precisamente a tese que dessa vez atribuía ao Supremo Tribunal Federal. No entanto, o STF, em dezembro de 1993, não deu ganho de causa ao governo do Pará e deixou margem a dúvidas sobre a procedência do assunto.
Dessa vez, afirmou o ministro, o STF apoiaria a tese da inconstitucionalidade, aquela mesma tese que ele havia sustentado enquanto advogado. Ninguém sabe, na realidade, qual seria a decisão do STF, mas quem pagaria para ver? Talvez a convicção do ministro da Justiça, afinal, desse peso aos argumentos que o advogado não conseguira fazer valer.
Mas o presidente foi advertido na ocasião, por várias pessoas, de que um novo decreto de regulamentação de áreas indígenas reabriria conflitos em áreas já pacificadas. O ministro da Justiça achava, ao contrário, que as contestações seriam muito poucas, limitar-se-iam a umas seis ou sete.
O novo decreto (1.775/96) foi promulgado em janeiro de 1996 e encerrou-se no dia 8 de abril o prazo para se apresentarem as contestações. Os resultados estão aí: mais de mil contestações incidiram sobre 70 terras indígenas. No Pará, todas as áreas indígenas foram contestadas, a maioria pelo governo do Estado.
O governo de Rondônia contestou áreas que ele próprio havia regularizado há poucos anos, com recursos do Banco Mundial e dentro do projeto Planafloro! Jogaria no lixo os recursos que sempre foram a desculpa dada pelo atraso das demarcações que, pela Constituição, deveriam estar concluídas em 1993. Governos, municípios e particulares inundaram a Funai de papéis que ela terá de digerir e apresentar ao ministro Jobim para uma decisão até o dia 8 de julho. Foi gerado um atropelo inédito.
Seria lamentável que este governo fosse incluído no rol daqueles que, desde a colônia, afirmam os direitos dos índios, mas abrem brechas pelas quais, como dizia Perdigão Malheiros, passam toda sorte de espoliações. De duas uma: ou o governo quer reabrir a discussão e tentar reduzir, por meio de um decreto, as garantias constitucionais das terras indígenas ou vai demonstrar firmeza na defesa da Constituição.
Como paliativo e para reparar o dano criado, o mínimo seria imediatamente promulgar e registrar as áreas que não foram contestadas, não ceder a injunções políticas no exame dos processos nem permitir a reabertura da próspera indústria de indenizações. Esse decreto reativou conflitos e já desgastou muito o governo. Os próximos 90 dias serão cruciais para demonstrar sua boa-fé.
Na verdade, deveria ser imediatamente revogado o decreto 1.775/96. O governo arrisca-se a vê-lo anulado, aliás, por uma ação direta de inconstitucionalidade que está em curso. E se se antecipou ao STF no caso do decreto anterior, por que não se anteciparia agora diante do tumulto e da incerteza gerados?

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