São Paulo, quarta-feira, 1 de maio de 1996
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Prefeito inferniza o Rio com obras por toda parte

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Costumo ir ao Rio de vez em quando, para alarme dos amigos e familiares: "O que é que você vai fazer lá? Cuidado com os assaltos!" Como se São Paulo fosse a cidade mais segura do mundo.
Nunca me aconteceu nada no Rio. Parece-me uma cidade como outra qualquer, só que incrivelmente mais bonita. Claro que a gente sente medo em alguns lugares. Mas, afinal, há gente passeando pelas ruas, mães com carrinhos de bebê, velhos fazendo cooper. Ou seja: vida normal, como não poderia deixar de ser, apesar das histórias de assalto.
Na verdade, fui assaltado uma vez no Rio. Já faz tempo, 1984. Eram oito horas da noite, eu estava jantando no restaurante do hotel. Foi quando entrou uma mulher avisando todo mundo: "Calma, estamos sendo assaltados".
Continuei comendo meu espeto misto, até que o primeiro assaltante chegou. "Baixa a cabeça todo mundo." Baixei. Outro bandido ficou na porta de acesso ao restaurante. O primeiro ia de mesa em mesa, pegando relógios e dinheiro das pessoas. Implicou com um japonês, de quem queria os dólares. No auge de sua excitação, fazia discursos.
"É a crise. É por causa dessa m... de crise que estou roubando." Repetia, a cada mesa por que ia passando, a palavra "crise". E a cada "crise" dava um soco nas costas de quem estava por perto.
Entreguei-lhe o dinheiro e o relógio. Era um Omega de ouro. Ou será que não era? Um relojoeiro argentino examinou-o certa vez. Seu veredicto era desconsolado, portenho, tangueiro: "Pero esto no es un Omega... y tampoco de oro..."
Dei por perdido o relógio, enquanto o japonês se justificava: "No dórar, no dórar". Depois, silêncio. Estávamos todos de cabeça baixa, sem saber o que se passava. Pouco a pouco, os hóspedes do hotel levantaram a cabeça. "Eles foram embora! Foram embora!"
No dia seguinte, os hóspedes foram convocados à delegacia de polícia. Os assaltantes tinham sido presos. Os pertences roubados estavam à disposição de todos.
Reconheci o meu Omega, que me foi devolvido sem problema nenhum. Fiquei com uma boa impressão da polícia do Rio; o caso ocorreu em 1984, mas mesmo em tempos tão longínquos a fama dela não era das melhores.
Foi meu único assalto. E desde então tenho ido ao Rio regularmente. É um prazer enorme chegar no Santos Dumont, já sentir desde o aeroporto a atmosfera mais cálida, úmida, com cheiro de mar. E aí pegar um daqueles táxis dementes que descem pelo aterro do Flamengo a toda velocidade, fazendo passar diante de meus olhos o filme verde dos jardins da Glória, os prédios velhos, as estátuas, enquanto aparece, iluminado, o Pão de Açúcar, no seu recorte nítido, "como que gravado em vidro", dizia o poeta Paul Claudel.
Já é outro país, outro mundo, a saber, o Brasil -enquanto nós aqui em São Paulo vivemos simplesmente a vida agressiva de uma metrópole qualquer. O Rio nos ensina que somos diferentes, que com todos os problemas atuais temos uma história e uma natureza particulares, brasileiras. Duas coisas -história e natureza- que São Paulo aniquila de modo brutal.
Feito esse elogio ao Rio, que poderia se prolongar muito mais, quero falar do choque que tive desta vez, com a gestão César Maia. O homem está infernizando a cidade, com obras por toda a parte. Remodela os calçamentos cariocas. O resultado disso é que não se pode andar em lugar nenhum. Nem a pé, nem de carro. Há congestionamentos de trânsito horrendos.
Às onze e trinta da noite de uma quinta-feira, peguei o trânsito completamente parado em Botafogo, na rua Voluntários da Pátria. Um outdoor mostrava um capacete azul de operário, com os dizeres: "Voluntários da paz". Queria justificar a enorme bagunça. E continuava: "É para o seu bem. Vai passar".
Imagino que o cidadão desesperado com o congestionamento, ao ler essa mensagem, tenha ímpetos de dar um tiro em César Maia. Nunca ouvi tantos comentários contra um governante como os que ouvi contra o prefeito na minha passagem pelo Rio.
O mais interessante, contudo, é a certeza quase provocativa que a administração carioca parece ter suas próprias ações. Dizer ao cidadão que o congestionamento "é para o seu bem, vai passar" revela uma psicologia tão grosseira que seria necessário entendê-la melhor.
Certamente tudo seria idiota demais se o objetivo básico do outdoor fosse acalmar a população. Obviamente, tem-se o efeito contrário. Mas não seria esse efeito -o de irritar- o que secretamente está sendo perseguido?
Imagino que esteja sendo criado um novo padrão de relacionamento com a opinião pública. O governante cansou-se de adular a população. Ele sabe que estará de qualquer modo exposto a críticas, numa situação em que o tecido urbano padece de fragilidade extrema, de um certo estresse face a tantas intervenções, e em que o público desconfia, por princípio, de interesses escusos envolvidos em qualquer concorrência.
O governo assume assim um papel autoritário de novo estilo. Não mais a grandiosidade das promessas e dos projetos salvadores, enfiados goela abaixo do contribuinte. É mais o estilo do professor, do médico, do técnico que está em voga. Desde a esfera federal, onde os altos juros são mantidos por mais que todos reclamem, até a esfera municipal, onde a Prefeitura X pede desculpas pelo incômodo ou simplesmente decide pôr tal bairro de pernas para o ar porque "é preciso". E se, com isso, a população ficar descontente, tanto melhor.
César Maia foi entrevistado no "Roda Viva" desta segunda-feira. Venceu todos os jornalistas. As obras no calçamento são consideradas como uma maluquice supérflua do prefeito, que além de tudo está estreitando as pistas de tráfego para os automóveis. "Não", diz ele. "Estamos recuperando a calçada para os pedestres."
Assume sem problemas a fama de "maluco" que adquiriu; pretendia obrigar os motoristas de táxi a usar gravata; quis prolongar o horário de verão; e pensou em trazer os três Beatles para um show, por exemplo. Diz entender o termo "maluco" como sinônimo de "corajoso".
Nessa produção incessante de decisões, na criação de polêmicas sem importância e de "fatóides", há um fator inquietante, que a entrevista no "Roda Viva" evidenciou. De um lado, as respostas de César Maia não encontravam contestação. De outro, tudo o que ele faz parece contestável.
Haveria aqui um sinal de que as relações entre imprensa e governantes passam por uma crise. O prefeito do Rio, como o de São Paulo, sabe que é fácil aparecer nos meios de comunicação criando polêmicas de segunda ordem, como a questão do cinto de segurança, do fumo em restaurantes, da gravata para os taxistas. Qualquer indivíduo pode ter opinião a esse respeito.
Não é tão fácil contestar qualquer coisa na área técnica, na reforma urbana, nas prioridades do orçamento. A não ser que se descubra alguma irregularidade nas concorrências públicas, há um despreparo geral para a discussão.
Qual o resultado? Uma mistura de técnico e showman, como César Maia, atrai as atenções para o supérfluo e segue impávido projetos urbanos que surgem como os relâmpagos das mãos de Júpiter.
Vive-se atualmente, não só no Brasil, uma dupla de despolitização: a tecnocracia e o show-business se combinam na produção de fatos de governo cujo peso ideológico e efeitos sociais são difíceis de avaliar. A crítica e a contestação parecem tão amadorísticas quanto os palpites que se queira dar sobre a saúde de um parente ao médico que está cuidando do caso.
Como um médico, os governos dizem: "É para o seu bem, vai passar". E os incomodados que se mudem.

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