São Paulo, quinta-feira, 2 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pela hora da morte

OTAVIO FRIAS FILHO

Sobre um gramado tão verde que parece feito de velcro, um anúncio recente mostra fileiras de cruzes brancas, todas iguais, nenhuma inscrição, nada de mármore. "Um dia todos os corpos serão iguais, aproveite enquanto o seu é diferente", diz o slogan. Sob o mesmo lema, outro anúncio exibe ossos empilhados como na catacumba de alguma catedral gótica.
O hedonismo publicitário, cada vez mais franco e desabrido, não hesita mesmo diante de temas problemáticos: precisamos de você, vivo. Se antes o freguês era instado a correr para a liquidação antes que ela acabasse, agora, como se fosse a própria vida que estivesse em saldo, a pressa é a de consumir antes de desaparecer.
Todos são iguais sob as leis do mercado. Como acontece quase sempre na publicidade, o slogan está invertido. "Um dia todos os corpos serão diferentes, aproveite enquanto o seu é igual", seria o correto. Na ilusão do consumo individualizado, o anúncio lembra também que a moda é um antídoto temporário para a decadência dos corpos.
Outra propaganda mostra três corações lado a lado. A imagem é dura: vemos as enervações e gorduras, os canos cortados, a superfície ainda brilhante de úmida. Por um momento parecem corações de boi ou de porco, não de gente. Seria, aliás, interessante saber. O anúncio etiqueta cada um com sua raça: white, black, yellow.
Quem vê cara não vê coração (ou é o contrário?), a idéia é a de que a publicidade não reconhece diferença entre as pessoas, sendo imoral deixar de vender por conta da cor, preferência sexual etc. do consumidor. O açucarado do recurso ao coração, que soaria batido ou piegas, é cortado pela imagem subitamente cardíaca.
Um crítico famoso chamou as imagens do cristianismo de "criaturais". Ele tinha em mente que ao iconizar a coroa de espinhos, o sangue na cruz, a sede saciada com vinagre, a carne tornada hóstia -ao destacar esses aspectos orgânicos, quase fisiológicos, a imaginação cristã sublinhava a decadência dos corpos e a transitoriedade da vida terrena.
O modelo que ele opunha à criaturalidade cristã era o das imagens do paganismo. Seus deuses são eternos (não morrem na cruz, por exemplo), seus heróis passam por mil peripécias sem um arranhão, é como se os personagens pairassem sobre a vida corporal, vivendo os prazeres e as aventuras, mas não as vicissitudes.
Mestra em inversões, em expor o que deveria permanecer oculto, a publicidade da nossa época também é "criatural", mas num sentido contrário ao cristão. Quando ela faz menção à impermanência dos corpos, como nos anúncios dos corações e das cruzes, é para valorizar a vida imediata, não a futura, é com o propósito de afastar em vez de atrair o desfecho.
É como se a criaturalidade publicitária fosse pagã, consciente de que tudo é transitório, mas empenhada, por meio de disfarces e ilusões, em cultivar a fantasia da imortalidade, nosso verdadeiro sonho de consumo. Ela se expande, para tanto, até os limites dos dias de cada um ou, ao menos, de seu saldo bancário.

Texto Anterior: O prefeito e a bobina
Próximo Texto: Uma lei e cinco obscenidades
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.