São Paulo, domingo, 5 de maio de 1996
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A falência da ilusão biográfica

PHILIPPE WILLEMART
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Não existe talento natural", esta é uma das numerosas teses defendidas por Freud e ressaltada por Sarah Kofman, filósofa, em "A Infância da Arte", publicada recentemente na bela edição da Relume-Dumará. Estudando os textos dispersos e específicos de Freud sobre a arte, o livro de Kofman continua atual e indispensável no panorama da crítica literária e artística brasileira, apesar de ter sido publicado na França há mais de 25 anos.
A maioria de nossos críticos desconhece grande parte da posição do criador da psicanálise em relação à arte por desprezo ou, se já leram, por falta de volta aos textos freudianos. É bem verdade que a leitura minuciosa de toda a obra freudiana por Kofman a partir de alguns tópicos permite levantar problemas que não são evidentes na primeira leitura da obra freudiana. Lendo entre as linhas e diferenciando o fazer do dizer freudiano, Kofman consegue esclarecer o leitor sobre a dupla leitura da obra freudiana, o porquê da fascinação pela arte, o método de leitura de Freud, a arte na economia da vida e os limites de uma psicanálise da arte. Gostaria de ressaltar dois problemas abordados por Kofman que, na verdade, ilustram dois preconceitos correntes na intelectualidade brasileira: a ilusão biográfica e a noção de talento.
Quanto ao primeiro, Freud logo identifica no biógrafo uma admiração e uma identificação narcisista, que, evitando a crítica negativa, mantém a idealização quase religiosa do autor e de sua obra, como faz qualquer criança com o pai. A onda de popularidade atual por Ayrton Senna, Tom Jobim ou os Mamonas comprova a necessidade de heróis e objetos de identificação do público.
Freud propõe então "matar" o pai, liquidar o complexo de Édipo subjacente a esta atitude e substituir a admiração pela desmontagem dos mecanismos que produziram a obra de arte, porque "o sublime" obedece às mesmas leis que o normal e que o patológico" (pág. 26). E, comparando Freud com os marxistas, Kofman salienta que "o conhecimento da ideologia é inútil se não se acompanha de uma renúncia pulsional".
A noção de talento ou de dom decorre da mesma atitude: "Falar de gênio é evitar o desvio pelo trabalho de pesquisa. É dar uma explicação verbal destinada a camuflar a ignorância e a necessidade de ilusão (...) "A imaginação criadora é incapaz de inventar seja o que for, ela se contenta em reunir elementos separados uns dos outros" (pág. 180). "O dom não é um 'dom' de Deus ou de uma 'boa natureza'. Ele não é inato, ele é consequência de um duplo determinismo ou de um duplo acaso, o jogo de forças psíquicas (...) e das experiências que o artista teve que viver" (pág. 184).
O que a psicanálise pode fazer então? Falando de Goethe, Freud responde: "Mostrar novos fios na 'obra-prima de tecelão' que se desdobra entre as disposições pulsionais, as experiências e as obras de um artista" (pág. 181).
O leitor desconfiará certamente de Freud ao ler estas considerações. Desfazer os conceitos de talentos, de dom e de natureza e atacar a "ilusão biográfica" retrata um "novo iconoclasta" que assusta, como o chama Kofman, parecido com aqueles que destruíam as imagens no século oitavo na Igreja bizantina. Freud não errou se entendermos que somos frutos de uma combinação imprevisível de células, muito mais passivos do que atuantes, falados pela língua que se impõe desde o nascimento, empurrados pelas estruturas socioeconômicas que nos cercam. São verdades reconhecidas por todos e difíceis de rebater. Não precisaria a rigor do inconsciente freudiano para comprová-las.
Entretanto, contra a exaltação do indivíduo e da consciência nas religiões, filosofias e mentalidades, Freud ousou afirmar que Moisés, Goethe, Dostoiévski e todos os grandes homens não podem reivindicar para eles, nem os homens em nome deles, um talento especial. "É a quantidade de sublimação pulsional" que decide onde se localizarão os interesses de uma natureza narcísica e se um homem se tornará um neurótico ou um artista (...) a sublimação se fará por si própria, pelo simples jogo das forças psíquicas (...) "logo que suas inibições tenham sido superadas pela análise" (pág. 184). Freud parece inferir que a análise favorece a criação artística.
Sem querer entrar numa discussão teórica, diria que a análise não atrapalha certamente o criador, mas não é por isso uma condição necessária à arte. Freud defendendo sua descoberta não podia pensar de outra maneira e acreditava que as atividades humanas decorriam totalmente da vida pulsional, mas mesmo assim tomou posições vanguardistas, se soubemos entender a diferença entre o homem disposto a criar e o artista, entre aquele que engajou-se num processo de escritura, escultura, pintura ou música e aquele que assinou a obra.
Sustentando que "o fantasma constitui-se a partir da obra" e não está na sua origem (pág. 97) e que cada obra "exprime" mais claramente os fantasmas do artista (pág. 98), entenderemos que trata-se do escritor por exemplo que, entrando no processo escritural, submete-se à língua com seus valores e sua história, imprime sua marca e seu estilo, fruto de sua vida pulsional e de sua inserção na vida literária de sua época e torna transparentes situações talvez vividas, mas não ditas ou escritas por seus contemporâneos.
Assim entenderemos o artista como porta-voz de anseios de cunho literário, social ou político de seu meio podendo "exprimir" não os fantasmas do homem que iniciou o processo, mas os da comunidade da qual faz parte. Os artistas passariam assim da categoria de pai, na qual os admiradores os colocavam inconscientemente na sua infantilidade para a de intérpretes, ouvidos, sem dúvida, mas não por isso portadores da verdade e infalíveis. Esta mudança de foco permitiria eliminar de vez a impressão dada por Freud de reduzir qualquer leitura literária a um fantasma. Opondo a leitura estrutural, que apenas descobre os fantasmas universais, à leitura genética, que tem a vantagem de revelar o fantasma do artista (pág. 110), Freud fez um grande passo, já que singulariza o fantasma, mas, igualando o artista ao autor de uma obra entregue ao público, salientamos a riqueza do método de leitura analítica freudiana que Sarah Kofman trouxe ao leitor brasileiro na tradução fiel de Maria Ignez Duque Estrada.

A OBRA
A Infância da Arte
Sarah Kofman. Tradução de Maria Ignez Duque Estrada. Editora Relume-Dumará (r. Barata Ribeiro, 17, Rio de Janeiro, CEP 22011-000, tel. 021/542-0248). 236 págs. R$ 24,00.

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