São Paulo, segunda-feira, 6 de maio de 1996
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Sociólogo quer estatística sem intervenção do Estado

LUIZ ANTÔNIO RYFF
DE PARIS

Para o pesquisador francês Alain Desrosières, 56, estatísticas servem de base para discussões sociais e são produtos de convenções sociais.
"O importante não é que os números sejam confiáveis, mas que todo mundo pense que eles sejam confiáveis", diz Desrosières, um dos mais importantes historiadores e sociólogos da estatística na Europa, autor de "A Política dos Grandes Números", onde faz uma análise histórica da produção da estatística no mundo.
Para ele, a credibilidade dos números depende do Estado. "As estatísticas são confiáveis quando o Estado é legítimo."
Professor do Centro de Pesquisa em Economia e Estatística da França e pesquisador do Insee (Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos) Desrosières chega ao Brasil no dia 27, para participar do Encontro Nacional de Produtores e Usuários de Informações Sociais, Econômicas e Territoriais, promovido pelo IBGE.
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Folha - Estatísticas são confiáveis?
Alain Desrosières - A melhor resposta é dizer que não têm nenhuma importância. Mas seria uma resposta cínica e irresponsável.
Os números são importantes na vida social, não tanto pelo que dizem, mas pelo fato de que a sociedade concorda em discutir a partir desses números. E eles servem de base para negociações, discussões, indexação dos salários. Números são importantes, pois permitem uma economia de conflito.
Folha - Mas qual a utilidade da estatística quando há números díspares para a mesma situação? Desemprego, por exemplo?
Desrosières - É verdade que achamos números diferentes para o mesmo problema. Tudo depende dos métodos da pesquisa e das convenções utilizadas.
Na França, todos se perguntam quantos desempregados existem. Há dois números diferentes. Um é resultado de uma sondagem feita duas vezes por ano interrogando 50 mil pessoas.
O outro número é da Agência Nacional para o Emprego (ANPE), órgão público de auxílio aos desempregados que produz uma estatística mensal. É óbvio que os números não batem. Tem gente que está desempregada mas que não se inscreveu na ANPE, por exemplo.
Para o grande público isso é incompreensível. Há a idéia realista de que um objeto corresponde a um número preciso. É preciso um trabalho pedagógico para explicar que um assunto específico pode ter números diversos. É preciso ter em mente que os números de estatística resultam de uma série de convenções sociais. E isso é uma tarefa difícil para todos os estatísticos, em países desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento.
Folha - O sr. acredita que a estatística desempenha um papel mais importante de acordo com o grau de desenvolvimento de um país?
Desrosières - A estatística é uma peça do processo de organização e regulação da sociedade. Pode-se dizer que a estatística é ligada ao Estado de direito. Substitui um Estado de anomia de uma sociedade, em que relações sociais são reguladas pela força. No Estado de direito as leis são aplicadas da mesma maneira a todo mundo. De certa maneira, a estatística reflete isso.
Folha - Não é um acaso que Estado e estatística tenham a mesma etimologia?
Desrosières - Inicialmente, a estatística era uma atividade ligada à descrição do Estado. Na sua origem, no século 18, na Alemanha, ela não era nem ligada à idéia de números. Era um panorama de costumes, da economia, do clima, de leis etc. Na mesma época, a Inglaterra criava a "Aritmética Política", recolhendo informações sobre o que, mais tarde, ficou conhecido como demografia. No início do século 19, as duas práticas se aproximaram, principalmente na França napoleônica. Pouco mais tarde, o sentido de estatística acabou se tornando a descrição em números do Estado e, pouco a pouco, da sociedade.
Folha - Mas a produção da estatística continua ligada ao Estado. Não há risco dela se transformar em instrumento de manipulação?
Desrosières - A primeira etapa é construir um sistema estatístico ao abrigo da manipulação do Estado. No final dos anos 50, na França, havia uma grande inflação e o Insee pesquisava uma lista de preços que servia para indexar salários.
E o governo, que queria que os salários não subissem tão rápido, bloqueava os preços dos produtos listados. Desde o início dos anos 60, foi fixada um regra. A lista que serve para calcular o índice é secreta, mesmo para o governo.
Folha - Mas, recentemente, o governo mudou o método de cálculo do desemprego. Pelo novo método o desemprego teria diminuído em março, enquanto que, pelo antigo, ele teria aumentado...
Desrosières - É verdade, mas os dois números são divulgados.
Folha - A mídia noticia os dois, mas dá destaque para o novo número, considerado o oficial. O sr. não acredita que a estatística sirva como um instrumento de poder?
Desrosières - A expressão "instrumento de poder" alude a uma suspeita, talvez justificada, talvez não. É mais importante refletirmos sobre a construção de um Estado de Direito, de formas de regulação uniformes e de um sistema estatístico de qualidade. Se a estrutura administrativa é suspeita, é preciso desconfiar de tudo.
A estatística não será o problema mais preocupante. Antes vamos suspeitar de desvio de verbas públicas, por exemplo. Se conseguirmos construir uma estrutura administrativa em que a população tenha confiança, ela será confiável em questões de impostos e de estatística. O problema é de confiança na democracia.
Folha - E a estatística que não é produzida pelo Estado?
Desrosières - Transformar a estatística em um bem mercantil é uma tendência. Para o usuário massivo de estatística, é menos importante a questão da credibilidade do que sua disponibilidade.
Folha - Uma das palavras chaves hoje em dia é globalização. Qual o papel da estatística na globalização da economia e da informação?
Desrosières - Para que os números possam circular mundialmente é preciso que os significados desses números sejam os mesmos em todo o planeta. Isso pode ser feito por negociação ou por imposição mercadológica. Na Europa, por causa da unificação, foi criado um escritório em Luxemburgo para tentar harmonizar as diversas nomenclaturas estatísticas.
Outra forma é um país, por intermédio do mercado, impor suas normas. Como na Internet. Alguém perguntou aos brasileiros ou aos franceses se aceitavam que o inglês fosse a língua corrente na Internet?

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