São Paulo, segunda-feira, 6 de maio de 1996
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Brasil e Paraguai na breve história do tempo

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Estava lendo uma biografia de Camus de 855 páginas e, subitamente, adormeci. O livro imprensou meu corpo contra o sofá, de forma que acordei logo, assustado, com a voz de Stephen Hawking, autor de "Breve História do Tempo", que contava sua vida num programa de TV.
Era uma voz metálica e não sei se era do próprio Hawking, sintetizada por um computador ou inventada pelos diretores do programa. Sei apenas que ele dizia que o universo tinha se expandido, enormemente, e chegaria um momento em que a expansão seria contida e começaria o processo de contração.
Para ilustrar o pensamento do sábio na cadeira de rodas, os autores do filme usaram uma xícara que cai da mesa e se estilhaça no chão. É o momento de expansão. Com um truque cinematográfico, voltam a cena, os estilhaços se recompõem, a xícara reaparece intacta. É o momento da contração.
Stephen Hawking confessa que divagou muito sobre o tempo. Chegou a pensar mesmo que, atingidas pela contração do universo, as pessoas se rejuvenesceriam, voltariam à infância e morreriam no útero materno.
Não demorou muito a superar essa idéia. O mundo iria contrair mas as pessoas não viveriam o tempo ao revés, não rejuvenesceriam: morreriam mais ou menos como morrem hoje -velhas ou combalidas.
Embora estivesse um pouco sonolento, percorrendo as praias da Argélia, no livro sobre Camus, creio ter entendido que a idéia da contração do universo está de pé e é uma hipótese com a qual podemos contar, embora não se saiba quando o processo vai mesmo começar.
Cheguei a me olhar no espelho e me achar um pouco mais jovem. Enterrei a palma da mão nos cabelos para realçar os fios brancos e acendi a luz para que sulcos e rugas aparecessem em sua plenitude, garantindo que, pelo menos naquela noite de domingo, o tempo estava correndo no sentido certo, rumo à decadência e à morte num universo ainda em expansão.
A idéia de Hawking, ou talvez minha alucinação sobre ele, alguma coisa me deixou desconfiado de que o tempo poderia desandar ao contrário, que a qualquer momento poderia começar o processo de contração e que dois pontos no universo eram bastante suspeitos, precisavam ser investigados: o Brasil e o Paraguai.
O Paraguai, com seu golpe militar meio maroto, mostrou que a história nunca se repete: na primeira vez é escocesa pura, na segunda é uma farsa. Mas todas aquelas cerimônias militares, o povo na rua, abraços de generais e presidentes, eram indícios demais para qualquer investigador intrigado com a possibilidade de um universo em contração.
No Brasil houve chacinas, uma grande mudança ministerial e tudo ficou parecido com o passado, como se de repente os três botões do presidente se transformassem num vistoso jaquetão e um bigode ornamentasse seus lábios como nos retratos empoeirados.
Cha cha cha de la secretária. No Senado, sobe a secretária do PTB de Minas, sra. Regina Assumpção. Secretárias são mulheres sofridas, inteligentes, que podem ter uma grande visão dos problemas nacionais.
Essa, no entanto, foi colocada na chapa do senador Arlindo Porto por pura improvisação. Faltava um nome, colocaram o da secretária do partido, a mulher que estava sempre ali e era de total confiança.
Agora, ela será senadora. Pode até dar certo. Nas burocracias partidárias, no fundo de cada maltratado escritório político, há gente pronta para dar o bote. Cuidam das atas, do pagamento do aluguel, da correspondência com TRE, enfim conhecem a rotina.
A senadora não fez campanha, não se expôs ao eleitorado, mas será que os outros suplentes que ascenderam são melhor preparados do que ela? Pelo menos, o Senado agora vai ter boas agendas, ninguém vai esquecer dia de aniversário, pode ser que alguns projetos até andem mais rápido.
Não quero parecer pessimista mas Brasil e Paraguai podem estar liderando o inevitável processo de contração do universo e merecem, nesse caso, um reconhecimento planetário -vivemos hoje o drama de amanhã.
Mais cedo ou mais tarde a coisa viria mesmo, é mais forte do que nós, e além disso é supermoderno, ninguém precisa ficar com vergonha, sobretudo porque não conhecemos bem a mente de Deus.
Lamento que Hawking não sustente mais a tese de que as pessoas iriam voltar à infância com o movimento de contração do universo. Tenho absoluta certeza de que alguns milhões delas, diante do que está acontecendo aqui no Brasil, vivem um enorme desejo de gritar "mamãe, mamãe".
Resta um consolo: a ponte da amizade está aberta. Milhares de sacoleiros transitam de um ponto para o outro: eletrodomésticos, cheques sem fundo, manuais do usuário, carro roubado, a vida continua pulsando com toda a força. Vamos cantar uma guarânia, desejar melhor sorte para Solano Lopez e lamentar que tenha sido tão breve a história do tempo.

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