São Paulo, segunda-feira, 6 de maio de 1996
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Cegos à injustiça

ANTONIO KANDIR

Em artigo publicado na Folha, afirmei que a Justiça brasileira é cara e ruim. Apresentei dados mostrando que as despesas com pessoal do Judiciário, no nível federal, aumentaram 357% em termos reais, entre 1987 e 1996, passando de R$ 600 milhões para aproximadamente R$ 2,7 bilhões.
Alertei ainda que percebia no Congresso disposição para aprovar projetos que implicam ainda maior aumento de gastos dessa natureza (somando projetos do Superior Tribunal do Trabalho, que criam 2.643 novos cargos, e do Superior Tribunal Federal, o aumento de gastos supera a casa de R$ 1 bilhão/ano).
O artigo mereceu resposta estimulante do professor Ives Gandra Martins, por meio do artigo "Justiça nem cara, nem ruim". Estimulante, mas na direção errada.
Dizer que a Justiça não é cara, por absorver o Judiciário federal porcentagem pequena do orçamento público, como faz o professor Ives Gandra, é argumento que não faz jus à inteligência de seu autor. Aceito o argumento, também o Legislativo não deveria ser posto em xeque, o que seria absurdo.
A questão do destino que o Judiciário dá aos recursos não se torna menor porque os percentuais são pequenos (não o sendo de modo algum em termos absolutos!). A questão é que o Judiciário oferta um bem público essencial à vida em sociedade, e os contribuintes têm todo o direito de exigir que a alocação dos recursos tenham destinação apropriada.
A propósito, não fiquemos apenas no espantoso aumento de 357% dos gastos com pessoal, bastante superior aos também expressivos aumentos verificados no Executivo e Legislativo, falemos também do aumento dos gastos com custeio e investimento no Judiciário, que passaram de R$ 282,377 milhões, em 1990, para R$ 504,410 milhões, em 1995.
Investimentos são necessários, sem dúvida. Mas o que dizer quando se sabe que parte importante dos investimentos do Judiciário federal nos últimos anos destinaram-se à construção da sede do Superior Tribunal de Justiça (STJ)? O que dizer quando se descobre que essa obra consumiu a espantosa cifra de R$ 170 milhões, suficiente para construir mais de 20 mil casas populares, 170 escolas e 17 hospitais de porte médio?
O que dizer quando nos damos conta de que a sede do Tribunal ocupa 133 mil m2 de área construída para abrigar os 32 ministros e 1.600 funcionários? O que dizer frente à informação de que, desde que a obra foi completada, mais de R$ 7 milhões já foram gastos com complementos, sendo R$ 1,9 milhão só com a compra de mobiliário?
Diante desse quadro, receio que estejamos diante de um caso manifesto de apropriação corporativa crescente de recursos públicos. Para o que, convém anotar, o argumento da "pequena porcentagem do orçamento público" tem sido de grande valia para justificar remuneração e condições de trabalho especialíssimas para um contingente numericamente reduzido de servidores públicos (dois meses de férias por ano, com adicional de 1/3 para cada um dos meses, férias acrescidas de recesso de 20 dias e outras "prerrogativas").
Quanto a dizer que a Justiça brasileira não é ruim, perdão, mas é ruim sim. Haja vista a impressionante impunidade dos mais variados crimes e a frequência com que os cidadãos brasileiros deixam de recorrer à Justiça para resolver litígios, por sabê-la morosa e ineficaz.
É claro que os tribunais federais não são os únicos responsáveis por esse estado de coisas. A cadeia de causas é extensa e também complexa.
Agora, negar que a Justiça seja ruim é fechar os olhos para a realidade. É aferrar-se à defesa corporativa do Judiciário quando o que está em jogo, muito além da expiação de culpas eventuais desta ou daquela instituição, é a possibilidade de construir-se uma sociedade civilizada neste país.
Resta sublinhar que não me move a intenção de promover um "ataque ao Judiciário", muito menos denegrir a imagem dos profissionais que nele trabalham. Sou também membro de um Poder da República, o Congresso, que não é propriamente o reino da virtude. E o critico com frequência, por julgar ser de minha obrigação zelar pelo dinheiro público.
A sociedade tem o direito de indagar se seus recursos estão sendo bem utilizados pelos Poderes da República, e o Judiciário não é exceção. O Executivo e o Legislativo, desde o retorno à democracia, vêm sendo forçados a abrir suas vísceras ao olhar da opinião pública.
Muitas vezes esse processo produz exageros e distorções. Mas isso é parte do aprendizado democrático da sociedade brasileira e claramente preferível ao silêncio obsequioso ou atemorizado reinante no regime autoritário.
É assim que as instituições do Estado se vêem obrigadas a disciplinar seus gastos e corresponder às expectativas da cidadania. Em nenhum lugar do mundo foi de outra maneira. Não será diferente aqui.

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