São Paulo, terça-feira, 7 de maio de 1996
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O fim do anonimato

MARIA ERCILIA
DA FOLHA ONLINE

"Na Internet ninguém sabe que você é um cachorro" era a legenda de um cartum publicado na revista "The New Yorker" em 94 e reproduzido à exaustão por aí. Num seminário sobre Internet em São Paulo, ainda em 94, o conferencista americano mostrou o cartum à platéia tensa, em que muitos estavam ouvindo falar no assunto pela primeira vez. Ninguém riu.
Provavelmente ninguém tinha um amigo maluco que passava o dia na rede, confortavelmente escondido atrás de um pseudônimo esquisito, paquerando em canais de conversa.
Corta para 1996. A piada da Internet como lugar perfeito para esconder a identidade parece cada vez mais despropositada -privacidade é o que menos se tem na rede. Exagerado, um analista de sistemas me disse que nem passeia na Internet por prazer, só por obrigação. "Não quero que ninguém seja capaz de rastrear minhas preferências", disse.
Paranóia. Mas que nossos passos na rede ficam todos registrados lá, isso ficam. Quem tiver algum problema com isso, melhor fazer como o tal analista de sistemas (acho que ele não gostaria que se revelasse seu nome).
A Internet é um espaço de socialização relativamente novo e, como não levamos nosso corpo quando viajamos por ela, podemos ter uma falsa impressão de invisibilidade.
O remédio é tratá-la como espaço público e não privado -embora essas dimensões estejam trombando na rede.
Correio eletrônico não é secreto nem inviolável. Quando realmente não quiser que ninguém leia uma mensagem, mande em código. Pode parecer coisa de ficção científica, mas é o método garantido.
Muita gente se sente traída quando alguém divulga uma mensagem pessoal em uma lista de discussão, por exemplo.
Não tem nada mais deselegante mesmo. Mas é um risco que corremos a cada vez que mandamos uma mensagem.
E cada vez que preenchemos aqueles maravilhosos questionários sobre nossos hábitos, para receber em troca jornais personalizados e "agentes" de consumo (por exemplo: Affinicast - http://www.affinicast.com, Firefly - http://www.ffly.com, o Personal Journal do Wall Street Journal - http://www.wsj.com), é bom ter em mente se nos importamos ou não em divulgar data de nascimento, renda, preferências etc.
Corta para 94 novamente. Beverly Dennis, dona-de-casa norte-americana, preenche questionário de uma empresa chamada Metromail. Conta tudo sobre seus hábitos de consumo, na esperança de ganhar brindes da empresa.
Em vez disso, recebe uma carta violenta e sexualmente ofensiva de um detento numa prisão do Texas -12 páginas sobre sua vida, tecendo fantasias com sua marca de sabonete, as revistas que lia etc.
O preso fora contratado como digitador de dados pela tal Metromail, num daqueles programas de trabalho na prisão...
Histórias de terror como esta mostram que mal nos demos conta do quanto de nossas vidas já está caprichosamente digitado e compilado em centenas de bancos de dados.
É uma ironia do capitalismo eletrônico, que vende uma imagem asséptica, segura, sanitizada, livre de interferência humana. Mesmo que você não use a Internet e deteste computador, faça o teste: conte quantas senhas já teve de decorar, quantos cartões magnéticos repousam na sua carteira, quantos envelopes de mala direta recebeu esta semana. Anonimato é luxo do passado...

E-mail±netvox@folha.com.br

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