São Paulo, quarta-feira, 8 de maio de 1996
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Nóbrega encena utopia da felicidade popular

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Se você anda meio cheio do Brasil, cansado de tantos problemas, de tanta miséria, de tanta conformidade, noticio que Antonio Nóbrega está apresentando, no teatro Brincante, um show de músicas nordestinas chamado "Na Pancada do Ganzá".
O título é homenagem a Mario de Andrade, que planejava escrever um livro com os cantos folclóricos que recolheu pelo sertão. Cantor, dançarino, ator e músico, Antonio Nóbrega organizou o espetáculo em torno dessa pesquisa. Há toadas de rabeca, desafios, frevos e até uma guarânia recifense, sem contar com coisas lindas que não sei que nome têm, talvez só cantos de gente pobre, mas trepidantes de ritmo, alegria e vida.
Ao tomar contato com esse folclore todo, Mario de Andrade escreveu coisa muito certa, que foi reproduzida no folheto que acompanha o CD (pois há um CD também) do show de Antonio Nóbrega.
Eis o que ele disse: "Recolhendo e recordando estes cantos, muitos deles tosquíssimos, precários às vezes, não raro vulgares, não sei o que eles me segredam que me encho todo de comoções essenciais, e vibro com uma excelência tão profundamente humana, como raro a obra-de-arte erudita pode me dar".
É bem o problema do intelectual brasileiro, que sabe das imensidões da arte estrangeira, mas sente vibrar outra corda, imperfeita e verdadeira, de rabeca, a da memória de seu próprio país, e daí se comove, num misto de inferioridade, exaltação e culpa.
Nunca deixei de desconfiar das produções artísticas populares. Mestre Vitalino não é Michelangelo; nem podia ser -este raciocínio é de esquerda-, pois era um oprimido. Não tinha técnica nem cultura. A força do talento se torna mais valiosa apenas porque vence as deficiências do meio social. Por isso mesmo o talento ressalta, como se fosse um grito de alegria e realização contra uma situação que esmaga qualquer talento.
Sempre tive forte resistência a ver os espetáculos teatrais de Antonio Nóbrega. É que as fotos dos anúncios mostravam-no com um bigodinho falso, uma carinha "pura", certa de que vai agradar, na apelação de festa caipira, no recurso aos bons sentimentos, na cumplicidade do que é pseudo-autêntico.
Então ele está no palco, e começa na rabeca uma toada de boas-vindas. Pisca e vira os olhos como se fosse cego. Está de colete e gravata-borboleta. Tem uma cara de criança, como se fosse um Mickey Rooney sertanejo, um Mario de Andrade em miniatura.
A primeira impressão é de falsidade, de artifício. Mas logo tudo se esclarece. Antonio Nóbrega se põe a dançar, quando a música fica mais animada, e dança como um boneco, como uma marionete digital, como um maracatu eletrônico.
Toda a "falsidade" de Antonio Nóbrega então se explica. Não estamos no sertão de Pernambuco; não estamos vendo um cantador autêntico; não existe pano de fundo de miséria nesse teatro da Vila Madalena.
Antonio Nóbrega sabe disso, claro. O que ele faz é um exagero de alegria, um jogo teatral. Provoca uma estranheza no público à medida que ele próprio se deixa vencer por uma felicidade musical, por um ímpeto de dança, por uma doideira de espontaneidade falsa.
E é como se a "falsidade" de uma atuação exagerada -o fingir-se de ceguinho, o criancismo de tudo- revelasse melhor a força daquelas músicas. Já sabíamos que o lugar do espetáculo era um teatro interessante na Vila Madalena; que toda a alegria daquele frevo não está em Recife ou Olinda, e sim num país cético, desnacionalizado, distante.
Mas Antonio Nóbrega encarna, por assim dizer, a contradição. Mostra-se postiço, alça a voz, faz com que ela voe, fantasiosa, em liberdade. Inventa-se como oprimido feliz. Realiza, então, a utopia de felicidade e de ser livre que havia nessas músicas da pobreza.
Mostra a falsidade teatral como que encenando uma coisa que Mario de Andrade certamente viu: vitalidade artística num ambiente de morte e opressão. O paralelo assim se realiza: assim como, na música folclórica, há alegria enganada frente a uma situação social trágica, no show de Antonio Nóbrega há uma afirmação alegre de vida rústica frente à falsidade do teatro.
Quando fui, havia muitas crianças na platéia. O próprio Antonio Nóbrega tem muito de criança. Toda criança sabe que sua criancice é falsa. Todo ator sabe que o seu trabalho é só teatro.
O Brasil autêntico talvez tenha desaparecido para sempre. Quem sabe renasça, triunfante nos seus frevos, algum dia. Mas, do ponto de vista de quem faz arte, isso não importa muito. O falso e o verdadeiro aí se confundem; encena-se uma utopia de felicidade popular, seja ela realizável ou não.
Se esse tema é interessante para você, recomendo que, depois de ver "Na Pancada do Ganzá", leia o livro "Poesia Ingênua e Sentimental", de Schiller, editado pela Iluminuras. Eis o que ele diz sobre crianças e arte folclórica.
"É erro acreditar que a mera representação do desamparo seja aquilo que, em certos momentos, nos detém com tanta comoção junto às crianças. Não ficamos comovidos porque olhamos para a criança do alto de nossa força e perfeição, mas porque da limitação do nosso estado, que é inseparável da determinação uma vez atingida por nós, elevamos o olhar para a ilimitada determinabilidade e para a inocência pura da criança... na criança se expõem a predisposição e a destinação; em nós, o acabamento, que sempre permanece infinitamente aquém destas."
"Determinabilidade ilimitada": estas palavras de Schiller se aplicam bem ao Brasil, a um futuro que não precisaríamos julgar com fatalismo. Pelo menos podemos tratar o caso brasileiro com amor à arte, amor infantil e imenso. O show de Antonio Nóbrega nos abre o coração.

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