São Paulo, quarta-feira, 8 de maio de 1996
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Cineastas respondem à carta de Glauber

DA REPORTAGEM LOCAL

A Folha procurou os cineastas e personalidades vivos citados por Glauber Rocha em sua carta a Celso Amorim, então presidente da Embrafilme, publicada na edição de 5 de maio no caderno "Mais!".
Na carta, em tom de desabafo, Glauber rompe amizade com vários colegas de profissão. Chama "Os Sete Gatinhos" (filme de Neville d'Almeida) de pornochanchada, afirma que Ruy Guerra é um cineasta de direita, que Arnaldo Jabor faz filmes "pornochiques" e que "Pixote", de Hector Babenco, teria se beneficiado do decreto de exibição obrigatória, considerado "uma chantagem" por Glauber.
A seguir, leia as respostas desses cineastas.
Neville d'Almeida
"Tenho um grande amor e admiração por Glauber Rocha. Não é uma carta dele que vai mudar isso. O filme 'Os Sete Gatinhos' é baseado em uma obra de Nelson Rodrigues e tem um elenco que reuniu dois milhões de espectadores no Brasil. Mais público do que todos os filmes que Glauber fez na vida. 'Os Sete Gatinhos' tornou possível lançamento de filmes do Glauber.
A carta mostra como o Brasil trata mal seus artistas. Quando escreveu, ele estava abandonado, se sentindo traído pela maior parte dos amigos. As considerações que ele faz sobre 'Os Sete Gatinhos' são fruto da ingenuidade dele. É uma crítica moralista. Não fiquei ofendido. Entendo suas razões. Mas fico triste porque acho que Glauber cometeu um engano. O fato de um filme brasileiro ir bem não faz com que o outro vá mal. O inimigo do cineasta brasileiro não é o outro cineasta brasileiro, é o estrangeiro. A crítica de Glauber é injusta. Sempre fiz um cinema forte, livre, independente, por isso Glauber, poucos meses antes de escrever a carta, me procurou e deu seu roteiro 'O Testamento da Rainha Louca' e disse: 'Quero que você filme esta história com sua liberdade, independência e estilo sábio'. Fiquei honrado e estou muito emocionado com a carta. Sou solidário a ele. Sou um cineasta consagrado pelo público, mas sei também que Glauber fez uma revolução no cinema. Naquele momento, ele estava sentindo que ia morrer. Meu amor por ele está inalterado."
Ruy Guerra
"Existiu um primeiro Glauber e um segundo Glauber.
O primeiro Glauber foi o cineasta de 'Barravento', 'Deus e o Diabo na Terra do Sol', 'Terra em Transe', 'Antônio das Mortes', 'Cabeças Cortadas', o 'Leão tem Sete Cabeças'. Um Glauber apaixonado pelo cinema e pelo Brasil.
Desse Glauber eu fui amigo e companheiro de muitos anos.
O segundo Glauber é o autor desta carta para Celso Amorim, que acho maldade publicar. Uma maldade para com a memória de Glauber, tantos anos após a sua morte, e que não traz nada de novo.
Os insultos gratuitos e calúnias -e não somente aos agora citados-, tinham-se tornado uma constante de Glauber, nos frequentes artigos que enviava ao exterior.
Com este Glauber eu já tinha tomado a iniciativa de romper quando publicou a sua carta-manifesto na revista 'Visão' em que elogiava a ditadura militar e considerava o general Golbery de 'o maior gênio da raça'. Cortei relações pessoalmente em Roma e depois publicamente, num festival de Brasília. Isso pode ser comprovado lendo a imprensa da época.
Respondi a Glauber quando ele estava vivo. Recuso-me agora a polemizar com um morto.
Só quero acrescentar, sobre a minha pretensa busca de vantagens no Brasil, que até o dia de hoje nunca fiz nenhum filme com apoio da Embrafilme -e sublinho o nenhum-, ou com a ajuda de qualquer outro órgão estatal de apoio ao cinema brasileiro.
Sobre ser um cineasta de direita na tela, a minha obra responde por si mesma. Basta ver os meus filmes e tirar as conclusões.
Quanto ao denunciar Glauber de fascista em Moçambique, isso faz parte do seu delírio e complexo de perseguição.
Talvez um dia escreva tudo isto dando a minha interpretação dos fatos, mas com o respeito que merece quem não pode responder -e com quem um dia dividi uma grande amizade.
Em tempo - Fui ao enterro do primeiro Glauber, emocionado e dolorido. O segundo Glauber não merece o primeiro, nem a minha tristeza.
Arnaldo Jabor
"Vocês não sabem o que é o amor. O casamento do Cinema Novo foi feito de beijos e coices de amor. Semanas antes desta carta, Glauber e eu brigamos na Somil, depois ficamos de bem, depois brigamos de novo e ficamos de bem. Além desta carta, há artigo posterior dizendo que eu sou um 'revolucionário'. Isso foi sempre. O Cinema Novo foi um movimento de irmãos briguentos e apaixonados. A leitura que a imprensa faz de Glauber e do Cinema Novo é mixa e careta. Não adianta explicar. Amor não se explica. Aliás, Glauber tem razão. 'Eu te Amo', ao qual ele se referia, é um filme paródico de um filme pornô, sim. Pornocrítico. Adoro filme pornográfico. Só que Glauber não viu 'Eu te Amo' antes de morrer."
Hector Babenco
"Por um lado, gostei de ver que Glauber chegou, no fim da vida, às conclusões a que eu já tinha chegado havia tempo, sobre a falência do modelo estatal de cinema. O que ele não entendeu é que, com Estado ou sem Estado, a massa escolhe o que quer ver. Ele nunca levou em conta o desejo do outro, mas sim quis impor seu desejo ao outro. O cinema é uma arte muito sincera, o filme mostra quem você é. 'A Idade da Terra' mostra a confusão que era a cabeça do Glauber naquele momento. A mãe dele diz que ele morreu de Brasil, mas acho que ele morreu de rejeição. Na carta, é como se ele dissesse: 'Não posso mais fazer filmes que ninguém vê, preciso ser amado'. E a carta termina com um 'me dá um dinheiro aí', puro e simples."

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