São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 1996
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Bocados de vida do passado

MILTON HATOUM

a França, talvez mais do que outros países da Europa, costuma eleger ícones culturais, porta-vozes de um círculo cultural ou de uma tendência ideológica. Na segunda metade deste século, Sartre foi o exemplo mais notável desse fenômeno que, diga-se de passagem, é quase inexistente no mundo anglo-saxão. Roland Barthes e Michel Foucault talvez tenham sido as últimas figuras emblemáticas da cultura francesa do final desse milênio. No entanto, há grandes escritores que, adeptos da discrição, renunciaram à polêmica e ao alarde. Claude Simon, mesmo depois de ter sido contemplado com o prêmio Nobel, é um deles. Penso que Georges Perec não terá sido o último. Ele nos deixou ainda jovem, mas os livros que escreveu já revelam um dos escritores mais inventivos da literatura francesa contemporânea.
Seu romance mais ambicioso ("A Vida, Modo de Usar") não apagou o brilho de outros textos como "Un Homme qui Dort" e "Espèces d'Espaces", em que traços autobiográficos são bem menos evidentes do que nesse excepcional "W ou A Memória da Infância". Aqui, Perec não se entrega à magia da dissimulação a fim de contar passagens de sua infância e adolescência; ainda assim, há muitos artifícios de linguagem que, já no título desse romance, preparam o leitor para uma viagem com muitas correspondências entre as duas histórias que o compõem. Isso porque, nos dois relatos alternados de "W ou A Memória da Infância", não são poucos os pontos em comum, os espelhamentos, os sinais que um texto remete ao outro.
"W" (uma letra que, invertida, torna-se "M", de Mémoire/Memória) é um relato romanesco que nas primeiras páginas tem um sabor de romance de aventuras. Mas logo ficamos sabendo que W é um leque que encerra muitos significados. Em primeiro lugar, é a inicial do sobrenome de um menino (Gaspard Winckler) que emprestou seu nome ao narrador, que é também um desertor. Este só fica sabendo desse fato por meio de um insólito encontro com um homem que lhe diz que Gaspard Winckler havia desaparecido num naufrágio perto de uma ilha na Terra do Fogo. É a partir desse encontro que o fato de levar o nome de um outro torna-se um feito, ou melhor, uma busca. O desafio do narrador será o de encontrar esse menino, único sobrevivente do naufrágio.
Nada sabemos sobre o desfecho dessa história, mas muito sabemos dos outros significados de "W", uma ilha onde supostamente o narrador iria encontrar o náufrago. Trata-se de uma sociedade pensada exclusivamente para o esporte, regida por leis implacáveis, onde só há lugar para os vencedores. As mulheres e as crianças vivem confinadas numa fortaleza; o sexo é algo bestial, e todo o resto (ou seja, quase tudo) é submetido a leis rigorosas, a uma lógica infernal, a uma coação brutal.
Só os nomes dos primeiros vencedores são conservados com devoção na memória dos homens, mas os títulos e medalhas, símbolos de vitória, "não tardariam a tornar-se mais importantes que o nome dos Atletas". Numa sociedade tão absurda (e ao mesmo tempo tão programada e vigiada) é impossível não se pensar nas parábolas e nos romances kafkianos. É Kafka que nos vem à mente quando nos deparamos com essas "utopias negativas", esses mundos sem saída para os vencidos, mundos em que a liberdade, o valor individual, o respeito mútuo e a tolerância deixam de ter sentido.
Com linhas sinuosas, Kafka escreveu muito sobre esse mundo, que não deixa de ser o nosso. Os estados totalitários, com seus campos de concentração (o lado mais extremado da política, segundo a expressão de Todorov) levaram a cabo esse pesadelo. E é sobre esse pesadelo que trata a outra história de "W": a infância errante de um menino que perdeu o pai no dia do armistício e a mãe num campo de concentração.
Nesse relato autobiográfico, narrado às vezes de uma forma meticulosa, Perec nos dá uma assombrosa e comovente visão de uma infância que só pode ser evocada por meio de fragmentos, de lacunas, de hesitações. "As lembranças são bocados de vida arrancados ao vazio", diz a certa altura o narrador. Sem muitas pistas sobre a história dos pais, munido de algumas fotografias e de poucos relatos de familiares, Perec tenta reconstruir esses bocados de vida do passado. O vazio, aqui, aponta também para um passado povoado de dor. São tantas as andanças e as viagens sem rumo pelo interior da França durante a guerra, são tantas as pessoas que acompanham o menino, que os lugares, o tempo e os rostos dos adultos não podem mais ser fixados. "Não havia mais passado... As coisas e os lugares não tinham nomes ou tinham vários; as pessoas não tinham rosto" (pág. 86).
Não há, portanto, uma entrega ao romanesco (como em outros textos de Perec), mas antes uma oscilação entre os dados que o narrador fisga do passado e a memória, ou melhor, a falta, as lacunas, algo que nunca se completa. "De todas as lembranças que me faltam, esta é talvez a que eu mais gostaria de ter: minha mãe me penteando, fazendo-me aquela ondulação engenhosa" (pág. 63). Há várias passagens nesse tom, que dialogam com outras em que a memória é mais pontual, mais precisa, menos hesitante. Contrapontos como esses são as duas versões que o narrador escreve sobre os seus pais: a primeira, escrita 15 anos antes do momento em que ele escreve o livro; a segunda é, na verdade, uma variação da primeira, retificada com notas e comentários. Assim, Perec parece insinuar ao leitor que a distância temporal dá margem a muitas versões ou variações de uma cena do passado. É nesse espaço da ambiguidade, das oscilações da memória que o narrador reconstrói a sua infância.
Da certa forma, os dois relatos alternados se complementam, como se um projetasse uma luz fria sobre o outro. Ainda adolescente, Perec esboçara o retrato fabulado de uma sociedade olímpica, em que os atletas ignoram as leis que os esmagam, onde o V dos vitoriosos nos remete ao V sinistro do "Velódromo do Inverno", em Paris, durante a ocupação nazista. No último parágrafo do livro, o narrador nos informa que esqueceu as razões que o levaram a situar "W" na Terra do Fogo.
Mas como o livro foi publicado no auge do gorilato de Pinochet, a escolha geográfica da fábula torna-se, mais do que uma clarividência, uma assombrosa evidência da realidade, pois várias ilhas da Terra do Fogo sediaram os campos de concentração da ditadura no Chile. Também "a memória da infância" de Perec ecoa brutalmente nesse final de século: os campos de concentração de Ormarska, Keraterm e Trnopolje erigidos pelos sérvios da Bósnia evidenciam a universalização da violência, mostram que os mundos fabulado e vivido por Perec assomam no centro de uma região (de um mundo) que se pretendia livre desses fantasmas.

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