São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 1996
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Licença para fingir

JOACI PEREIRA FURTADO

com a publicação de "A Poesia dos Inconfidentes", que reúne a obra dos três poetas envolvidos na conjura de Minas, o atormentado espírito de suicida -ou assassinado?- de Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) pode descansar em paz. Pelo menos quanto ao que restou de sua obra poética, finalmente lhe fizeram justiça. Após um ostracismo editorial de 93 anos, a íntegra do legado em versos de Cláudio ressurge agora, mui acrescido e melhorado, em edição que se poderia qualificar de "definitiva", não fosse a ameaça dos arquivos intocados ou o vezo filológico e vicarial de alguns especialistas. Mas não sejamos tão otimistas: a minuciosa investigação de Melânia Silva de Aguiar, responsável pelo estabelecimento do corpus claudiano, deixa poucas esperanças de novos achados. Além disso, ela põe uma pedra sobre os problemas de atribuição e fixação dos textos, servindo-se de fontes confiáveis tratadas com impressionante erudição, e ainda nos agracia com inéditos. É o que basta para justificar a aquisição do livro, se não for suficiente o fascínio da capa dura e do papel bíblia.
As liras de "Marília de Dirceu", de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810?), também sob os cuidados de Melânia, foram organizadas com igual rigor. Segue-se todo o corpus gonzaguiano conhecido até hoje -o que inclui o épico-marítimo "A Conceição"- e tudo o que Manuel Rodrigues Lapa encontrou de Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744-1792). No final do volume, em apêndice, foram transcritos os depoimentos dos três conspiradores conforme edição de 1978-1982 dos "Autos da Devassa da Inconfidência Mineira". O livro contém ainda um "Painel Histórico" com o mais completo balanço da historiografia da Inconfidência, as cronologias da conspirata e dos poetas, extensas bibliografias sobre a conjuração e os três autores e artigos introdutórios relativos a cada corpus -e, em alguns casos, especificamente a algumas obras.
Totalizando 1.264 páginas, é natural que uma publicação dessa envergadura apresente algumas incorreções ou soluções editoriais nem sempre felizes -como colocar todas as notas, exceto as do "Painel Histórico", no final do volume, o que torna a leitura um suplício, pois elas somam 109 páginas. Mas "A Poesia dos Inconfidentes" carrega problemas mais sérios que erros desculpáveis como o "neoliberalismo" (um ato falho?) da pág. 47 (nota 44) ou o "Barcelona" da pág. 658, "Lira 23" de "Marília de Dirceu" (palavras que devem ser substituídas, respectivamente, por "neomercantilismo" e "Barbacena").
Na verdade, trata-se de uma publicação qualitativamente desigual, em que o empenho investigativo e os avanços verificados no estabelecimento da obra claudiana e de "Marília de Dirceu" não se repetem com o mesmo vigor no restante da poesia reunida no livro. Os textos das "Cartas Chilenas" e da poesia de Alvarenga Peixoto são os mesmos editados de 1957 a 1960 por Lapa, melhorados apenas nas anotações. Para os 795 versos que restaram de "A Conceição", baseados na transcrição realizada por Ronald Polito de Oliveira publicada pela Edusp, não foi elaborada uma nota sequer -enquanto que somente o soneto 62 de Cláudio mereceu cinco notas.
Uma certa incúria na organização geral do volume permitiu lapsos como a repetição -reconhecida na página 1.131- de dois poemas de Gonzaga (págs. 716-721). Uma revisão mais atenta teria evitado imprecisões históricas como as cometidas por Melânia de Aguiar -que atribui a criação da Real Mesa Censória a d. Maria 1a.-, Domício Proença Filho -segundo o qual Gonzaga foi nomeado ouvidor de Vila Rica em 1779- e Lúcia Helena -para quem o autor de "Marília de Dirceu" foi julgado pelo Tribunal da Santa Inquisição e teria escrito o "Tratado de Direito Natural" em 1768. A publicação, destinada ao público não especializado, prescinde dos artigos de José Veríssimo, Manuel Bandeira e Rodrigues Lapa que reproduz integralmente. São trabalhos que, apesar de importantes, interessam mais ao pesquisador e que às vezes contêm informações equivocadas ou interpretações caducas- particularmente no caso de Veríssimo. Bastaria resenhar esses textos nos ensaios introdutórios. As cronologias deveriam servir para liberar os ensaístas dos detalhes históricos e bibliográficos, que, no entanto, são resumidos em quase todos os artigos.
Tais observações, que sempre correm o risco de serem lidas como ressentimentos de preterido, de modo algum reduzem a importância dessa iniciativa editorial, tão rara quanto louvável no Brasil. Mas seria no mínimo injusto não advertir o leitor quanto às deficiências da publicação, de resto facilmente superáveis numa segunda edição.
Com isso, resta pouco espaço para comentar a recepção dessa obra poética pelos ensaístas -algo tão relevante quanto qualquer outro aspecto do livro e que aqui será abordado com lamentável brevidade. O título do volume -"A Poesia dos Inconfidentes"- é o mote glosado nos ensaios sem se questionar se essa poesia é realmente "de inconfidentes". Isto é, em momento algum aventou-se a hipótese de que as relações entre essa obra e a Inconfidência Mineira talvez sejam bem mais tênues do que se faz crer, conforme Sérgio Buarque de Holanda já suspeitava(1). Com maior ou menor intensidade, os ensaios estão permeados pelo empirismo de origem romântica que vigora na historiografia da literatura brasileira desde o século 19, apropriando-se da poesia como "espelho da realidade" e patrimônio da "biografia da nação".
Lembradas também numa perspectiva romântica, as preceptivas retóricas que constituem o discurso literário árcade sucubem muitas vezes ao "contexto histórico" que os ensaístas querem ver transliterado nos versos da tríade de conspiradores. Ora, a retórica não era então mera maquiagem do texto poético, mas a sua própria essência. Com ela, o poeta procurava atingir efeitos precisos em seus leitores (ou ouvintes), segundo o programa árcade de "educação, deleite e emoção" e de acordo com o objeto dos versos. Assim, "ornar" o discurso significava armá-lo com os intrumentos indispensáveis aos seus intuitos pedagógicos e moralistas intrinsecamente reiteradores dos valores aristocráticos, dos quais o chamado "arcadismo" era subalterno(2) e aos quais a trindade "mineira" permaneceu aferrada.
As "louvações" de Alvarenga Peixoto, por exemplo, longe de revelarem propensões bajulatórias do arrependido conjurado, estão plenamente afinadas com o princípio -muito caro ao absolutismo- de que o louvor do príncipe é útil e necessário à nação(3) -prática à qual nenhum poeta árcade se furtou. Essas convenções tornam anacrônica qualquer tentativa de perscrutar a expressão de subjetividades ou o registro de "fatos" nesse discurso literário que espelha apenas a imagem que aquela sociedade fazia de si mesma.
De modo que, antes de buscarmos qualquer relação entre tal poesia e a conjura, talvez seja muito oportuno refletirmos mais na lição do jesuíta Lourenço Kaulen, em réplica às invectivas de "O Uraguai" publicada em 1786: "Senhor Gama, que os poetas finjam, ou mintam, passa; porque têm licença para o fazer"(4).

NOTAS
1.Sérgio Buarque de Holanda, "História Geral da Civilização Brasileira", 4a. ed., São Paulo, Difel, t. 1, v. 2, pág. 376.
(2) Jorge Antonio Ruedas de la Serna, "Arcádia: Tradição e Mudança", São Paulo, Edusp, 1995, pág. 147.
(3) Ibidem pág. 24.
(4) Apud Ibidem, pág. 117 (nota 7).

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