São Paulo, sexta-feira, 10 de maio de 1996
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Internet é um espaço para manifestação de taras

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sempre que entro numa loja de doces, a Ofner ou a Brunella por exemplo, ganho não só calorias mas algumas angústias e frustrações a mais.
É que, diante de mim, está uma vitrine repleta. Há escolhas demais, a tentação se multiplica. Um viking quebraria o vidro e comeria tudo. Um paulistano sem maiores pretensões pediria uma torta de morango ou uma bomba de chocolate.
Mas eu enfrento o seguinte problema: há muitas variedades de doce. Qual escolher? O chato é que só pedirei um ou dois. Qual? Quais?
Há alguns triangulares, de arestas recobertas com chocolate, e mostrando um interior listrado de rosa e branco. Há outros inteiramente brancos, com pintas verdes (que sabor terão?). Cones misteriosos e folhados; bolotas negras cujo interior se desconhece; alusões ao kiwi, à pitanga, à cereja. Como saber?
Escolhendo um, perco os demais. Esse é o problema. Há muitas possibilidades numa vitrina de doceira. Os salgadinhos são mais ou menos os mesmos. E têm nomes, o que é importante: empadinhas, coxinhas, folhados, casadinhos. Os doces não têm nome. E são multidão.
Qualquer pedido será rejeição do resto. E comer um doce, vitimar uma oferta contra todas as outras, já é frustrante, já é uma cretinice frente à abertura de possibilidades que havia na vitrine.
E é mais ou menos essa a reação que tenho diante da Internet. O leitor que não se espante ao ver comentários sobre a rede na Folha nesses dias. É que os jornalistas da Folha foram conectados à Internet e expressam suas primeiras impressões.
Você tem interesse pelo mundo Disney? Sim, tenho. Quer ler a manchete do "New York Times"? Sim, quero. Quer saber se no museu de aviação em Boston há menções a Santos Dumont? Sim, por que não? Quer entrar no museu Andy Warhol? Quer saber o que Cézanne disse de Van Gogh? O que Rabin falou do massacre israelense? O que Glória Pires quer das eleições na Rússia? Qual a melhor receita de salmão? Qual o melhor ponto de lesbianismo em São Francisco?
Sim, sim, mil vezes sim. Claro que me interesso por muitas coisas. Tudo é interessante, no fundo. A história do asfalto, se bem contada, terá emoções dignas de "Guerra e Paz".
Aí está o problema. A Internet atende a todos esses interesses. Mas que diabo! São só "interesses". E o "interesse" do homem normal é sempre flutuante, como o de quem hesita diante de que doce escolher numa vitrine.
A Internet serve, na minha opinião, muito mais para quem já sabe o que quer do que para quem está aberto a todo tipo de informações.
O maníaco por calçados femininos logo encontrará seus companheiros de tara. O colecionador de orquídeas trocará facilmente informações e dicas pelo computador.
O farmacêutico naturalista, o acadêmico interessado na vida de Barbey d'Aurevilly, o cozinheiro que quer saber quantas endívias pôr numa torta de linguiça, todos provavelmente encontrarão informações úteis na Internet.
Acontece que a maioria dos usuários da rede não sabe exatamente o que quer. Tudo é interessante, para quem não tem interesse específico nem sofre de alguma tara erótica ou especialização profissional.
Claro que isso tem um sentido -que toda a oferta de bens culturais oferecida pela Internet não existe por acaso. Trata-se de ocupar o tempo livre, de preencher o ócio de milhares ou milhões de desempregados, os quais o próprio progresso da informática criou.
A Internet é, antes de tudo, uma máquina de ocupar o tempo. Cada assunto que você pede no computador demora horas para ser acessado. Há canais de conversa, newsletters de pura baboseira. O capitalismo contemporâneo não sabe o que fazer dos seus desempregados estruturais; ocupa sua população mais crítica, mais civilizada, mais contestatária com os brinquedos da Internet.
Não é esse o pior desfecho da comédia. A Internet é hoje um brinquedo, uma ocupação, um espaço para a manifestação de taras e curiosidades. Não sei quanto isso dura. Depois de duas sessões em que procurei acesso a temas de meu interesse, cansei-me enormemente.
E um problema dos dias de hoje é o seguinte: as pessoas não sabem o que desejar. É por falta de desejo, não por excesso, que buscam as drogas, por exemplo. As drogas sabem se fazer desejadas, porque viciam. As drogas ocupam a falta de desejo, criando-o quimicamente. Ninguém sabe o que quer. Nem eu, diante de um menu da Internet ou diante da vitrine de uma loja de doces.

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