São Paulo, sábado, 11 de maio de 1996
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Direito a reboque

EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE

Há anos sou leitor assíduo da coluna "Letras Jurídicas", de Walter Ceneviva. Na semana passada o professor Ceneviva tangenciou, ainda uma vez, o tema fascinante e provocador das procriações artificiais.
Invocando as dificuldades geradas pela reprodução assistida, o articulista se reporta ao leitor para auxiliá-lo a encontrar respostas mais adequadas à desinformação e contradição que dominam o tormentoso terreno. Como a matéria já foi alvo de nossas indagações científicas -quer a nível jurídico, quer ético-, não vacilamos em apresentar algumas respostas aos questionamentos levantados.
O primeiro exemplo hipotético, da senhora cujo marido já faleceu e pretende ser engravidada pelo sêmen dele, devidamente congelado, caracteriza a inseminação "post mortem" (após a morte) e não gera dúvidas na pacífica doutrina atual: o contrato é nulo, porque inexiste descendência "post mortem", ou fecundação póstuma; e inaceitável, a nível ético, porque inadmissível a geração voluntária de uma criança órfã de pai. O nascimento de uma criança corresponde sempre a um projeto parental, do casal, e não pode, nem deve, atender os interesses egoísticos de um indivíduo (no caso em tela, a viúva).
A vontade da viúva não é a única diretriz aceitável, sob risco de se comprometer o interesse maior da criança, que continua sendo o de ter pai e mãe. Caso a viúva case novamente, o projeto de filiação é decorrente do casal e em nada dependerá do sêmen congelado, que passa a ser propriedade do centro de reprodução.
No caso da mulher sexagenária que "empresta" seu útero à filha que não pode engravidar, a criança, uma vez nascida, certamente será entregue ao casal, mas, juridicamente falando, a mãe gestacional (que leva a termo a gravidez impossível da mãe genética) é a mãe dessa criança, e, se ela se negar a entregar o filho ao casal solicitante, nada a obriga a fazê-lo, já que qualquer contrato que venha a ser estabelecido em tais casos não tem qualquer eficácia jurídica.
Por isso andou bem a Resolução do Conselho Federal de Medicina (nº 1.358/92) ao propor que as doadoras temporárias de útero pertençam à família da doadora genética (de onde provém o óvulo) e que a doação não tenha caráter lucrativo ou comercial. Isto é, no caso da mãe de substituição, excepcionalmente, uma parente (mãe, no nosso caso) se negaria a entregar o filho concebido à filha (que não pode gerá-lo).
A terceira hipótese, do casal ocidental que contrata os serviços de um centro de reprodução e que, por erro clínico, vê nascer uma criança com traços orientais, é solucionável mediante ação de responsabilidade civil, devidamente prevista em nossa legislação atual na reparação do dano. Quanto à responsabilidade dos pais pelo filho nascido de inseminação heteróloga, ela não suscita dúvidas, desde que a clínica tenha tomado a cautela de exigir manifestação inequívoca dos pais. Se a mulher se submeteu à inseminação sem consentimento do marido, ela é a única responsável pelo seu ato, e o marido pode promover a dissolução da sociedade conjugal, mediante separação judicial litigiosa. Se ambos rejeitaram a criança, responderão penalmente pelo ato. Se o casal se separar após a inseminação, a responsabilidade parental (guarda, alimentos etc.) persiste, e, se porventura, o bebê nascer defeituoso, tal erro de natureza não os exime da obrigação parental.
O direito brasileiro não tem acompanhado a evolução científica. Concordamos com o articulista. Mas o estágio atual da pesquisa e a maturidade ética que atingimos sempre indicarão caminhos suficientemente justos para defender o bem maior: a criança.

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