São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Vítimas de Aids criam ciranda de remédios

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

Remédios que sobram na prateleira dos mortos pela Aids estão ajudando a manter vivas outras vítimas da doença.
A inconstância na distribuição de medicamentos na rede pública está levando familiares e organizações não-governamentais a criar uma "ciranda dos remédios".
A rede poderia ser chamada de "solidariedade na morte": boa parte dos medicamentos que chegam às ONGs que trabalham com Aids vem de doentes que morreram. A família faz a doação.
"Muita gente já foi ajudada por esses remédios", diz Afonso Freire de Lima, voluntário responsável pela "farmácia" do GIV, um grupo de auto-ajuda de São Paulo.
Há dois meses, quando a falta do ganciclovir se acentuou, a caça aos remédios ficou dramática. O medicamento é o único que combate o citomegalovírus, um vírus que leva à cegueira. A falta do remédio provoca lesões irreversíveis.
Escolha de Sofia
O produtor Marcos Galvani, 29, perdeu 30% de uma vista por falta do medicamento. Foi salvo da cegueira total pelo remédio que sobrou do assessor administrativo Roberto C., 40, morto um mês antes (leia texto abaixo).
O presidente do GIV, José Araújo, 39, viveu em março o drama de "A Escolha de Sofia", ao ter de optar entre dois doentes que precisavam do ganciclovir.
"Tínhamos apenas quatro ampolas, e eram dois os pacientes que precisavam do remédio. Na fase aguda, o doente tem de tomar uma ampola por dia. Eu tinha de escolher qual deles ia salvar. Optei por aquele que já tinha perdido uma visão toda. Me senti um lixo", conta Araújo.
No dia seguinte, o grupo fez uma vaquinha e comprou o ganciclovir para o outro. "Se não fizéssemos isso, não poderia mais dormir."
Segundo Araújo, cada ampola do remédio custa R$ 80,00. Passada a fase aguda ou de ataque, o paciente continua tomando uma unidade a cada dois dias.
Em falta
No Emílio Ribas de São Paulo, o principal centro de infectologia do país, faltava DDI (um antiviral) havia duas semanas. Em Belo Horizonte, segundo o Gapa da cidade (Grupo de Apoio à Prevenção à Aids), também não havia DDI e a distribuição do ganciclovir era irregular e insuficiente.
"As pessoas continuam correndo o risco de ficar cegas", diz Roberto Chateaubriand Domingues, presidente do grupo. Segundo ele, falta até a pentamidina, um medicamento para pneumonia que o governo anunciou ter comprado em excesso.
Há três semanas, o Gapa mineiro recebeu de uma família 230 comprimidos de AZT. "O doente não fazia parte do grupo, mas já existe um pacto entre as famílias", diz Domingues.
Sem alimentação adequada e sem remédios, o doente de Aids no Brasil está vivendo três vezes menos que o europeu ou norte-americano.

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