São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Lições da dor de Lear

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como observou o crítico inglês A. D. Nuttall, a representação shakespeariana nos permite ver aspectos da realidade que de outra forma não perceberíamos nunca. Eu iria ainda mais longe: é Shakespeare quem molda nosso sentido de realidade e nossas modalidades cognitivas de apreensão da mesma, num grau muito maior do que Homero ou Platão, Montaigne ou Nietzsche, Freud ou Proust. Só a Bíblia rivaliza com ele, enquanto influência sobre nosso senso de como o caráter, pensamento e personalidade humanos podem ser imitados na e pela linguagem.
Nenhum outro autor ocidental tem menos consciência de já ter chegado tarde na literatura do que Shakespeare. Mas seu verdadeiro precursor não foi o quase contemporâneo Marlowe e sim a Bíblia. A tragédia do "Rei Lear" tem um único precedente à altura, o "Livro de Jó", conforme indicaram John Holloway e Frank Kermode.
Lear no meio do brejo, exposto à tempestade, é uma figura intencionalmente calcada em Jó. Que Shakespeare invoca a figura deste como um modelo para a situação de Lear parece tanto mais provável quanto mais se observa certas alusões recorrentes no texto. Imagens que associam o homem aos vermes e ao pó comparecem de forma marcante nas duas obras. E Lear mesmo, presumivelmente, está pensando em Jó quando exclama, desesperado: "Hei de ser um modelo de paciência", uma ironia terrível, considerando-se a natureza do rei.
Mas Jó é o homem reto, entregue às provações de Satanás, enquanto Lear é um rei cego, que não conhece nem a si mesmo, nem as filhas. Embora sofra a fúria da tormenta, não é um Jó nem em seus primeiros sofrimentos, nem em sua relação com o divino. É mais uma indicação da originalidade de Shakespeare que ele nos convence de uma dignidade e grandeza dignas de Jó, desde o primeiro estágio da dor de Lear, muito embora, em larga medida, esta seja causada pelo próprio rei, em contraste com a absoluta inocência de Jó.
Quando Lear diz ser um homem mais ultrajado do que ultrajoso ("more sinned against than sinning"), nossa tendência é concordar com ele, mas será que isto é mesmo verdade, neste ponto? Só como projeção, ou profecia; o que é ainda mais uma prova da originalidade assombrosa de Shakespeare, fundada sobre a representação da "mudança iminente", uma mudança que há de se dar, dentro do rei, à medida que escuta a si mesmo e reflete sobre o que está dizendo, em sua ira cada vez maior.
Lear entra na cena da tempestade urrando de raiva, enlouquece de raiva, e sai com uma mudança crucial profundamente instaurada em si, cheio de amor paternal pelo Bobo e de preocupação com o suposto louco Edgar, disfarçado de "Poor Tom". As mudanças constantes de Lear, desde esse ponto até o final terrível da peça, permanecem o exemplo máximo de representação da transformação humana, em toda a história da literatura.
Mas por que teria Shakespeare arriscado empregar o paradigma de Jó, visto que Lear é tão diferente dele e a peça está longe de ser uma teodicéia? Em que sentido pode o "Livro de Jó" ser um modelo apropriado para uma tragédia?
É de se supor que "Rei Lear" não se enquadre na tradição do cristianismo, embora Cordélia seja uma personagem eminentemente cristã, aludindo em suas falas ao "Evangelho de Lucas". Mas o Deus cristão e Jesus Cristo não são relevantes no cosmos da peça. É tão aterradora a tragédia dessa tragédia que Shakespeare tem a sagacidade de situá-la num tempo anterior à providência cristã, num período que ele deve ter intuído ser o de Jó.
Se com "Macbeth" Shakespeare aventura-se, em grande escala, pelo universo gnóstico, em "Rei Lear" arrisca-se a uma tragédia mais completa e mais catastrófica do que qualquer outro exemplo do gênero, antes ou depois.
A imagem do pai
A subtrama de Gloucester parece construída deliberadamente para contradizer o sentido bíblico de Lear como um sofredor isolado. Sua tragédia, então, não é tanto a da ingratidão filial, como a de uma espécie de niilismo apocalíptico, com implicações universais. Não há como simpatizar com as pragas tremendas do rei, mesmo se relacionadas crescentemente ao seu medo da loucura, que é também o temor de uma natureza feminina crescendo dentro de si.
No fim das contas, a demência de Lear, como suas pragas, tem a origem no seu sentido bíblico de identidade: desejando ser tudo em si mesmo, tem muito medo de não ser nada. Sua obsessão com a própria cegueira parece vinculada ao temor da impotência e da mortalidade.
Lear, porém, não é um herói comum, nem só um grande rei desaparecendo na loucura e na morte. Shakespeare oferece a ele uma dicção mais eloquente do que a de qualquer outra pessoa, nesta peça ou em qualquer outra, e que evidentemente jamais será igualada. Se Lear tem importância, é porque sua linguagem tem uma força única, e esse esplendor nos parece inteiramente apropriado à sua figura.
Poderíamos dizer, seguindo Nietzsche e Freud, que apenas uma, de todas as imagens ocidentais, não tem nem origem nem fim: a imagem do pai. Lear, mais do que Gloucester, mais do que qualquer outra personagem, mesmo em Shakespeare, é a imagem do pai, por excelência, a metáfora da autoridade paterna.
A natureza, na peça, é origem e fim, mãe e catástrofe, e deveria ser a função de Lear estabelecer e salvaguardar o terreno intermediário, entre o reino demônico e o dos deuses. Mas ele fracassa completamente e a tragédia que se segue abarca um mundo inteiro, com uma pungência sem igual em toda a literatura.
Veja-se a cena do reconhecimento entre Lear e Gloucester, no ato quatro: Edgar (o filho de Gloucester) começa observando que o "senso mais são" ("safer sense"), ou mente saudável não suportaria a imagem da mais alta autoridade paterna perdida na loucura. Mas "senso" aqui também se refere aos olhos (os olhos furados de Gloucester) e toda a cena é uma devastação organizada em torno das imagens duplas da visão e da paternidade.
A visão de Lear se aproximando, "fantasticamente enfeitado com flores", visão que "transpassa" Edgar, é intolerável para um herói discreto como ele, cujo único intento é preservar a imagem da autoridade do pai. Seu próprio pai, que perdeu os olhos, reconhecendo a autoridade de Lear pela voz, lamenta o destino do rei demente, como a obra-prima arruinada da natureza, e profetiza uma loucura igual, que há de gastar inteiramente o mundo.
A profecia será cumprida na cena final, mas por ora é protelada, para que o reinado da "razão na loucura", ou visão na cegueira possa se continuar. O "pathos" da cena transcende todos os limites no grandioso e breve momento de sanidade de Lear, quando implora a Gloucester e a todos nós: "Queres chorar a minha sorte? Toma meus olhos".
Longe de ser um modelo de paciência, Lear mesmo assim conquista para si a intensidade de dizer ao outro: "Precisas ter paciência". O que se segue não tem mais eco algum de Jó; é puramente shakespeariano e resume a essência profética da peça: "Quando nascemos, choramos, por ter chegado / a esse grande palco de palhaços" ("when we are born, we cry that we are come / to this great stage of fools").

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