São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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As cartas de amor entre Freud e Ferenczi

ELISABETH ROUDINESCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É sempre um grande acontecimento na história da psicanálise a publicação de uma correspondência inédita de Freud. Por isso é preciso aplaudir o lançamento do segundo volume de uma das mais belas correspondências do mestre com seu discípulo mais genial: Sandor Ferenczi. Entre 1908 e 1933, os dois trocaram 1.200 cartas.
O primeiro volume, publicado em 1992, abarca o período de 1908 a 1914 (editado por Calmann-Lévy, na França, e no Brasil, em dois volumes, pela Imago) e o segundo cobre de 1914 a 1919. Está previsto um terceiro volume que conterá mais 372 cartas. Essa edição completa, lançada inicialmente em francês e traduzida pouco a pouco no mundo inteiro, é a notável obra de uma equipe de 12 pessoas que trabalham sob a direção de Judith Dupont, psicanalista francesa de origem húngara, sobrinha de Alice Balint e responsável literária pelos textos de Ferenczi e de André Haynal e pelos arquivos em Genebra de Michael Balint, o principal discípulo de Ferenczi antes de emigrar para o Reino Unido.
O primeiro volume relata como nasceu a noção de contratransferência, inventada por Ferenczi e teorizada a seguir por Freud a partir de uma prática de cura em que se misturam os amores pessoais, a clínica e todas as formas de relações desejantes. Nessa época, chamava-se "psicanálise" uma cura pela palavra que não tinha muito a ver com o que ela se tornaria a partir dos padrões e proibições formulados pela Sociedade Internacional de Psicanálise (IPA) depois de 1925. Era comum nas primeiras décadas do século analisar parentes ou amantes. A proibição virá mais tarde, depois de Freud analisar a própria filha (Anna).
Por amor à liberdade e paixão terapêutica, Sandor Ferenczi experimenta ao vivo os males vinculados ao que mais tarde será chamado de "transgressão". Em 1904, ele se torna amante de Gizella Palos, oito anos mais velha que ele. A relação é tolerada pelo marido, que recusa o divórcio. A senhora vive com suas duas filhas: Magda, casada com o irmão caçula de Sandor, e Elma, nascida em 1887. Em 1908, Ferenczi começa a analisar sua amante e não hesita em analisar Elma três anos depois, quando ela apresenta sintomas depressivos.
Freud, que adorava seu discípulo a ponto de chamá-lo de "meu filho" e de querer que se casasse com Mathilde, sua filha mais velha, previne-o dos perigos dessa prática. Mas o impetuoso húngaro não se abala. Em 1911, depois do suicídio de um pretendente de Elma, Sandor anuncia a Freud que está apaixonado por ela. Ele precisará de muito tempo para entender que sentiu sem sabê-lo os vai-e-vem da transferência e da contratransferência.
A partir do momento em que percebe o imbróglio por meio do processo de cura de Elma e das trocas com Freud, ele renuncia a casar-se com uma mulher da qual é médico e confidente. Mas continua a desejar as duas mulheres ao mesmo tempo, uma que ocupa o lugar de mãe, a outra, de objeto sexual. É nessa época que obriga Freud a analisar Elma, que se casará por fim com um americano. Gizella tornou-se a mulher de Ferenczi, depois que ele foi analisado por Freud.
Ao longo do segundo volume da correspondência, as cartas são trocadas sobre o pano de fundo da guerra e da angústia. Sob os olhos dos dois protagonistas convictos de que assistem ao fim de um mundo, o velho Império Austro-Húngaro naufraga na morte e no imobilismo. Depois dos Tratados de Versalhes e do Trianon, tudo mudará no movimento psicanalítico, que será dominado a partir de então pela língua inglesa e pelo ideal pragmático e empírico do "american way of life".
Durante esse período de loucura e de conflitos íntimos (1914-1919), assistimos não só ao reconhecimento progressivo da psicanálise no mundo, mas também aos avanços decisivos feitos por Freud depois de sua ruptura em 1913 com Carl Gustav Jung. Ele redige a metapsicologia, concebe um novo modelo de organização narcísico do ego, lança as bases de sua segunda doutrina das pulsões (pulsão de morte/pulsão de vida) e de sua segunda tópica (o ego, o id).
Ferenczi, por sua vez, sai arrasado da análise, não só porque seus problemas de saúde não foram curados (tuberculose, hipertrofia da tireóide), mas porque tem a impressão de ter sido "submetido" a uma escolha sensata (Gizella) que é de Freud e não sua. Além disso, sofre com o autoritarismo do mestre, que só pensa em sua doutrina e na causa psicanalítica.
Se em todos os domínios da ciência a correspondência de um pensador é importante para compreender a gênese de sua teoria, ela é muito mais importante para a psicanálise na medida em que seu objeto é a vida sexual e inconsciente do homem e que sua elaboração é feita a partir da vida privada daqueles que a fundam, que experimentam em si mesmos seus efeitos e implicações. Foi certamente por isso que o movimento psicanalítico exerceu uma censura tão forte na correspondência de Freud.
Quanto mais esse movimento pretendeu investir no caráter sexual e privado dos "outros", na clínica, na teoria ou em psicobiografias e patografias, mais se mostrou pudico e censor em relação ao mestre fundador e aos seus discípulos, transformados em "santos" pela hagiografia oficial.
Pudemos constatar isso na ocasião do escândalo ocorrido com os Arquivos Freud em 1981, quando, após dois anos de trabalho, Jeffrey Moussa‹ev Masson, devidamente instituído mandatário pelos dois guardiões da ortodoxia, Anna Freud e Kurt Eissler, começou a "delirar" sobre a correspondência entre Freud e Wilhelm Fliess, da qual estava encarregado, a ponto de acreditar que ela continha um "segredo de alcova": segundo Masson, Freud teria abandonado sua teoria da sedução anterior 1897 (abuso sexual) por covardia, por não se atrever a confessar ao mundo que "todos" os pais eram violadores de crianças. Masson acreditou ter encontrado uma nova verdade em relação à sexualidade ao substituir a antiga censura pela idéia de um "Freud mentiroso", coberto de todos os pecados da civilização.
Hoje, depois de muitas dificuldades, faltam ser editadas duas grandes correspondências de Freud que dizem respeito à sua vida pessoal: a que manteve com sua mulher Martha, com sua filha Anna e, por fim, as cartas que escreveu para Minna Bernays, sua cunhada (irmã de Martha), com a qual teve uma relação íntima e não-carnal. Além disso, falta revisar toda a correspondência que foi censurada durante a publicação, seja por seus herdeiros, seja pelos herdeiros de seus destinatários, como a correspondência com Karl Arnold Abraham, que está sendo publicada, e as com Oskar Pfisfer e Arnold Zweig. É impossível saber se algum dia elas poderão ser integralmente reconstituídas.

Tradução de Luciana Artacho Penna.

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