São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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As sombras reais de um thriller

EDUARDO SIMANTOB
DA PUBLIFOLHA

No momento em que esse texto é escrito um telejornal noticia que 12 sequestros estão em curso no Rio de Janeiro. Os detalhes pouco importam, cada um segue suas negociações particulares, envolvendo as famílias, companhias de seguro, doleiros, traficantes, advogados e, de vez em quando, até a polícia.
Agora sequestro virou tema de livro. O "ex-mercador financeiro" Ivan Sant'Anna estréia nas letras bolando uma operação engenhosa, conduzida na melhor tradição dos thrillers americanos, descortinando os meandros e mutretas dos operadores de valor do Rio.
Sant'Anna conhece, e bem, o cenário em que plota sua ação. Trabalhou 37 anos no mercado financeiro. Conhece bolsa, banco, grana, mas o tal conflito primordial de classes, Sant'Anna tem sensibilidade suficiente para senti-lo no mais particular cotidiano do carioca. No Rio de Janeiro a violência pega como a Aids: ninguém está 100% protegido. E a operação que Ivan Sant'Anna armou em seu sequestro fez questão de envolver indivíduos das mais variadas e antagônicas procedências, debatendo-se como que num jogo. Com tabuleiro e fichas.
O tabuleiro de "Rapina" é a cidade do Rio de Janeiro e a vizinha Magé. As fichas não são só o dinheiro e outros papéis que passeiam cada vez mais soltos pelos cabos financeiros, mas também os cacifes políticos que muitas vezes podem virar radicalmente qualquer negociação.
Armado o cenário, Sant'Anna parte para a ação. Traficantes sequestram banqueiro e pedem US$ 10 milhões. Detalhe: US$ 10 milhões é muito dinheiro e o infeliz, um tal de Eriosvaldo Matos, dono de um tal de Banco Bullish não vale tudo isso.
O Eriosvaldo pode não ser peixão, mas sabe muito. E morre de medo de morrer. Assim, nada mais fácil do que fazer o que seu algoz quer. E este lhe pede que conte casos, "assaltos" e os nomes. Se puder, com telefones. E aí Sant'Anna solta a carruagem. No realismo de fundo é que reside o maior mérito do livro. As diferenças sociais e seus sintomas são expostos por meio de artifícios simples, mas que não truncam a ação e provêem informações ao mesmo tempo em que pintam o cenário.
Mercado
Claro que não se ganha mais dinheiro como antigamente, "saudades da Bolsa de 1971", suspira o personagem de Sant'Anna. E é fato que o mercado tem procurado se normalizar, definir regras claras. No entanto o mercado não é o filho único do capitalismo avançado e depende de uma rede intrincada de relações pessoais, políticas, de favores, atrações e muitos impulsos momentâneos em meio ao calculismo das estratégias de guerrilha financeira.
E o que fica claro é que existe muito tipo de bandido. O traficante trafica, sequestra, mata, o funcionário é intrigante e desleal, mas o patrão é mestre em falcatrua, sua mulher em adultério e o policial em extorsão, e todo mundo tenta livrar sua própria cara.
Os ingredientes estão aí, a receita deu certo. Ivan Sant'Anna, irmão do escritor Sergio Sant'Anna, tem agora o desafio do segundo livro, direcionado ao público dos EUA.
"Rapina", em tese, também se encaixaria muito bem numa livraria best seller de Nova York, mas seu enredo pode parecer por demais fantasioso para o povo americanos, que acredita que tem leis, Justiça hit parade, conduzida pela opinião pública, e presidentes que comandam. Enquanto isso, o Brasil real já virou ficção de si mesmo.

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