São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Le Carré transforma em santos os seus espiões

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

A guerra, que acabou não se travando, entre os Estados Unidos e a União Soviética, deixou, mesmo assim, vítimas, entre as quais se destaca o escritor inglês John Le Carré. Dizer que Le Carré foi um "profiteur" dessa batalha de Itararé que felizmente, como a outra, não ocorreu, seria uma grosseria. Mas não há dúvida de que nenhum outro autor se beneficiou mais dela. Quando, em 1989, o Muro de Berlim foi demolido, foi um pouco como se se derrubasse o castelo do autor de "O Espião que Veio do Frio".
Mas já então, do ponto de vista pessoal, o romancista Le Carré tinha de fato sua fortuna pessoal, seu castelo de escritor popular em todas as línguas. E, do ponto de vista da grande política internacional, ele também tinha seu caminho de fuga e de êxito por cima do cascalho, das colunas derrubadas do Muro de Berlim.
Seu mais recente livro, "Nosso Jogo", prende tanto o leitor que aprecia o gênero quanto os livros em que apareciam figuras como a de Smiley e de espiões da Cortina de Ferro.
E, acima de tudo, para lá do Muro derrubado, seus espiões ingleses criaram agora vida nova e nova vocação, virando místicos. Eles eram contra o comunismo stalinista. Agora são contra o "capitalismo" de Ieltsin, cujo ideal é o capitalismo fundamental, americano, ou o duro thatcherismo inglês.
La Carré deseja criar, com seus espiões, um mundo novo, ainda muito violento, porém mais virtuoso que o nosso. E assim consegue seus novos enredos. E vende seus livros novos. Deus o acompanhe.
Como se sabe, Le Carré tentou, quando já famoso como autor de thrillers, entrar para a "literatura" propriamente dita com "O Amante Ingênuo e Sentimental", que eu nunca li e todo o mundo achou chatíssimo. Em "Nosso Jogo" o autor cria uma mulher impossivelmente romântica e chamada Emma (este nome tem aparecido demais, desde a deliciosa Emma Thompson), que é talvez o único fracasso ingênuo e sentimental do novo romance. Os dois heróis, porém, o mais velho, chamado Tim Cranmer, e o mais jovem, o "santo", chamado Larry Pettifer, são ótimos. Talvez porque se baseiem em tantos espiões ingleses que, durante a Guerra Fria, nos deixaram várias vezes atônitos, como Kim Philby, Burgess e Maclean, ou Anthony Blount, traidor que era conselheiro de arte da rainha da Inglaterra.
O próprio Graham Greene os admirava e parece que foi meio agente secreto ele próprio. Espião inglês era diferente. Gente fina é outra coisa. No fundo, no fundo, acreditavam na construção de um mundo justo, no qual a maioria dos homens teria a oportunidade de se realizar e de jogar tênis também. Achavam, eu diria, que as idéias justiceiras de Marx que os russos tentavam implantar eram válidas. Só que os russos eram muito mal-educados. Os ingleses não queriam só justiça social. Queriam frequentar seu clube também, que diabo.
Não me esqueço de um dos romances de Le Carré em que Smiley descobre, numa taverna, um bom vinho na lista e o encomenda. O taberneiro, rude, traz a garrafa sem maior consideração, tira-lhe a rolha e vai logo despejar o vinho nos copos. Smiley implora: "Espere um pouco, por favor. Deixe o vinho respirar".
"Nosso Jogo" é de uma atualidade espantosamente jornalística. O espião inglês Larry, que rouba Emma do velho Tim Cranmer, está em conspiração direta com líderes tchechenos, que, no momento em que escrevo, acabam de ser assassinados. E Larry nunca mais é encontrado. Está contra os russos, a favor desses povos caucasianos que mal conhecemos de nome (tchechenos, inguchétios) e morre pela "causa" deles, como um crente da religião sufi. A única coisa que eu me lembro de ter lido há anos sobre os sufis é que eles sofrem tanto com o sofrimento dos seres vivos em geral, que, para falarem entre si, cobrem a boca com um pano de modo a não matar invisíveis insetos. É bem verdade que os sufis de Le Carré andam armados até os dentes e só pensam em matar o inimigo russo. No entanto, no fundo, Larry, o conquistador de Emma, o elegante espião, virou sufi.
E morreu. Não aparece mais, por muito que Tim o procure. Emma é encontrada, mas decididamente não quer mais nada com Tim. Toca piano e pensa em Larry, que só pensa na justiça. Ah, sim. Tim procura tanto Larry porque -por ciúme de Emma, despeito e fúria- tentou matá-lo. E durante quase todo o livro acha que talvez tenha conseguido.
Não conseguiu. Larry morreu, sem dúvida. Mas como herói, inglês que virou tchecheno, inguchétio, sufi. Le Carré, como sempre faz, escreve demais, carrega nas tintas, agrava as jogadas. Mas fez outro bom romance.
Se o leitor, lá pelas tantas, achar que há certo exagero, certa brutalidade, feche um pouco o livro. Volte depois. Deixe o vinho respirar.

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