São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Carrascos domésticos

Historiador diz que Holocausto é culpa do povo alemão

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

Na última terça, a Universidade de Nova York teve de cancelar um simpósio sobre o Holocausto porque a estrela da noite, o historiador Daniel Jonah Goldhagen, desistiu de participar do evento.
Por meio de um porta-voz, Goldhagen avisou que não vai mais aceitar discussões públicas sobre seu livro a respeito do Holocausto enquanto a versão alemã não estiver pronta, em agosto.
"Na Alemanha, está havendo uma grande dose de distorção e de infâmias sobre minhas idéias; se eu for forçado a responder, provocarei uma reação ainda mais forte, até o ponto de o público alemão deixar de poder refletir sobre elas", disse Goldhagen.
A causa de tanta celeuma, "Hitler's Willing Executioners - Ordinary Germans and the Holocaust" (Os Carrascos Voluntários de Hitler - Alemães Comuns e o Holocausto", Alfred Knopf, U$ 30, a sair no Brasil pela Cia. das Letras no segundo semestre), que está há três semanas na lista dos mais vendidos do "The New York Times".
No fim de abril, dias depois de seu livro ter sido posto à venda nos EUA e dias antes de viajar para o lançamento europeu, em Londres, Goldhagen teve uma amostra do impacto que sua tese teria.
Ele veio a Washington e tomou parte de um simpósio no Museu do Holocausto local. Mais de 600 pessoas superlotaram o auditório do museu. Goldhagen, 36, professor de história em Harvard, expôs seu trabalho de maneira simpática e segura. Em resumo, argumentou que é errado creditar apenas a Hitler ou aos nazistas a responsabilidade pela morte de 6 milhões de judeus durante o Terceiro Reich.
Embora tenha reconhecido que nem todos os alemães na década de 30 foram anti-semitas, ele disse que esse era o caso da imensa maioria da população na época e que os estimados 300 mil participantes ativos do Holocausto agiram de espontânea vontade e com apoio tácito de seus compatriotas.
Filho de um sobrevivente do Holocausto, também professor de história em Harvard, Goldhagen tem dedicado a vida à tentativa de compreender o fenômeno. "Os alemães poderiam ter dito 'Não' ao genocídio. Eles preferiram dizer 'Sim'. Os alemães tinham uma crença coletiva de que os judeus eram sub-humanos, maus, a fonte de tudo o que havia de errado na sociedade alemã", disse ele.
A resposta dos seus companheiros de mesa, todos judeus e estudiosos do Holocausto, foi negativa. Yehuda Bauer, 80, da Universidade Hebraica em Israel, tratou-o com desprezo: "Esta é a maneira errada de começar uma carreira acadêmica. Seu livro está cheio de idéias velhas e desacreditadas, que você tenta passar para nós como se fossem revolucionárias".
Nem todas as leituras do livro têm sido negativas. Por exemplo, o Nobel da Paz Elie Wiesel, o influente jornalista A.M. Rosenthal e grande parte do público o elogiam.
Sua tese se sustenta em três pilares, documentados após 15 meses de pesquisa em arquivos alemães. O primeiro é de que boa parte dos assassinatos de judeus foram cometidos pela polícia comum, não pelos SS, a tropa de elite do Exército alemão. A polícia comum (Ordnungspolizei) era formada por pessoas comuns, sem filiação obrigatória ao partido. Ele tem provas de que não havia punição aos soldados que preferissem ser dispensados da tarefa de matar judeus, mas, mesmo assim, pouquíssimos se valeram do privilégio. Mais: eles se orgulhavam da tarefa, chegavam a levar as mulheres para assisti-los em ação e eram extremamente cruéis com suas vítimas.
A segunda peça da acusação de Goldhagen é o fato de que, ao contrário do que ocorria com prisioneiros de outras raças, judeus não eram usados por seus captores para nenhum trabalho produtivo. As tarefas destinadas a eles só tinham a função de humilhar, enfraquecer e matar a médio prazo.
A terceira evidência são as chamadas "marchas da morte", já nos fim da guerra, quando até o comandante dos SS, Heinrich Himmler, já ordenara que judeus fossem poupados a fim de tentar mitigar a eventual vingança dos vitoriosos e, apesar disso, soldados comuns, inclusive mulheres, torturaram e mataram seus prisioneiros com aparente prazer.
"A vasta maioria dos alemães comuns na Alemanha nazista estava preparada para matar judeus porque a visão de que os judeus eram uma força estrangeira poderosa e má era como leite materno para eles", afirmou Goldhagen durante o debate em Washington. "Eles eram seres pensantes, não autômatos. Se lhes tivesse sido ordenado matar em massa o povo dinamarquês, eles teriam recusado. Não é coerção, nem obediência à autoridade, nem miopia burocrática, nem carreirismo o que explica o Holocausto, mas sim o anti-semitismo de seus perpetradores."
Um de seus debatedores, Konrad Kwiet, do próprio Museu do Holocausto, respondeu que o anti-semitismo não explica, por exemplo, por que os nazistas resolveram exterminar também os ciganos, os homossexuais e os deficientes físicos. "O que eu acho mais irritante é que Goldhagen se arvora ter descoberto a causa do Holocausto, o que nenhum acadêmico até agora, nem Hannah Arendt, se atreveu."
Para Goldhagen, a necessidade de se reabilitar a Alemanha durante a Guerra Fria é que criou a visão dominante de "terríveis nazistas oprimindo alemães como se os nazistas tivessem sido uma força estrangeira que obrigou os decentes alemães a fazerem coisas terríveis". Segundo ele, "não é isso o que a evidência mostra. Os alemães fizeram o que fizeram porque acreditavam naquilo".
O regime nazista, na opinião de Goldhagen, só deu as condições para os alemães agirem de acordo com suas mais profundas crenças. "Os alemães se engajaram no frenesi dos assassinatos com tanta energia e orgulho que muitos tiravam fotos de recordação de seus crimes e as enviavam para casa para que todos as admirassem."
No debate, Goldhagen respondeu com veemência às acusações de que seu livro é revanchista e agressivo. Ele se compara ao médico no pronto-socorro, que só pode trabalhar bem caso se distancie emocionalmente da mortandade que ocorre a seu lado. "Nesse assunto, ou você se distancia ou não faz o seu trabalho. Por isso estranho tanto as críticas de que o livro é apaixonado e raivoso."
Ele também se disse aborrecido com o fato de que, segundo ele, as críticas de seus colegas acadêmicos têm sido pessoais e não teóricas: "Todos agitam suas mãos e dizem que estou errado. Mas por que eu estou errado, se tudo o que afirmo é interpretação de documentos?".

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