São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Explicação de Goldhagen é retrocesso

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

A surpresa de "Os Carrascos Voluntários de Hitler" vem com o fato de que, aparentemente, o público ainda recebe como uma novidade, ou mesmo uma provocação, a constatação de Daniel Goldhagen, segundo a qual o nazismo e o Holocausto foram a obra de alemães comuns.
Desde o livro básico de Raul Hilberg ("A Destruição dos Judeus da Europa") podia-se imaginar que a coisa fosse não só sabida, mas aceita. Tanto mais que recentemente, em 1992, Christopher Browning, em um livro memorável ("Ordinary Men"), parecia ter mostrado de maneira conclusiva a complacência feroz de bons pais de família na tarefa cotidiana e sangrenta do extermínio.
Mesmo assim, o livro de Goldhagen seria de qualquer forma bem-vindo, tanto mais que a qualidade da documentação histórica é inatacável. Mas é complicado aceitar a explicação monolítica e obsessiva que ele oferece: segundo Goldhagen, alemães ordinários se tornaram exterminadores por paixão ideológica, por convicção anti-semita.
A imprensa alemã reagiu -com razão- antes mesmo que o livro seja traduzido: ironizou a aparente surpresa do público e apontou o "racismo" cultural de um argumento pelo qual um anti-semitismo próprio à cultura da Alemanha facilitaria a execução da tarefa genocida pelo seu povo.
Não é a primeira vez que historiadores escolhem, nesta matéria, a autopista da ideologia para explicar o acontecido. E, como cada vez, é um triplo problema.
Primeiro, como foi bem mostrado por Christopher Browning, de fato homens comuns se tornaram funcionários do massacre sem compartilhar nem fé no nazismo, nem um anti-semitismo declarado. Segundo, a explicação de Goldhagen deixa inteira a questão de saber como os mesmos bons pais de família lidaram com seus sentimentos morais exterminando não só judeus, mas também homossexuais, doentes mentais, poloneses, ciganos, comunistas etc. Terceiro, ela nos propõe implicitamente entender cada horror deste século como um efeito das paixões ideológicas dos carrascos: a coisa pode ter sentido na revolução cultural chinesa, mas deixa perplexo em quase todos os outros casos. O guarda do gulag era stalinista?
Um psicanalista ou mesmo um psicólogo poderia ter assinalado a Goldhagen que uma tradição cultural (no caso, anti-semita), por impressionante, atávica e coletiva que seja, não basta para que homens quaisquer ultrapassem suas inibições mais comuns: piedade, compaixão, vergonha, horror, culpa, amor das crianças. Há um abismo psíquico (felizmente) entre as declarações da consciência e as capacidades efetivas de ação: um racista mesmo declarado não é automaticamente um linchador. Precisa de algo mais para que o horror se torne possível.
Órfãos de sociedades tradicionais, onde o nascimento já implicava um lugar, uma função e um sentido para as vidas, não escondemos nossa nostalgia. Queremos e pedimos a volta a valores do passado, famílias sólidas, comunidades verdadeiras, quem sabe homogêneas, respeito a hierarquias estabelecidas. Vivemos nossa cultura como uma decadência permanente, sem reconhecer que a pouca significação social de nossas vidas é o preço de uma liberdade que também queremos.
É possível entender a sedução que pode exercer sobre nós qualquer proposta que prometa devolver às nossas vidas um aparente pleno sentido social. Geralmente tais propostas compõem, quando se realizam, universos totalitários: ocupam e justificam a vida toda de quem nelas procura um pouco de descanso a nossa histeria cotidiana. O extraordinário, mas também não impossível de se entender, é que, para participar destas monstruosidades nostálgicas, para encontrar uma ilusão comunitária, homens e mulheres como nós possam ter sido e ainda possam estar dispostos a sacrificar os traços básicos do que eles mesmos chamariam sua humanidade.
O livro de Goldhagen em suma é bem-vindo, mas nem tanto assim. A explicação do genocídio dos judeus pelo anti-semitismo atávico dos alemães é um retrocesso. Pois, se havia progresso no olhar sobre nosso século, este se resumia, parece-me, na consciência de que não houve horrores dos quais não seríamos capazes, apesar de nossos princípios morais e de nossas idéias.

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