São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Monstros comuns

Livro é ousado, mas está aquém da análise histórica

OMER BARTOV
ESPECIAL PARA "THE NEW REPUBLIC"

"Hitler's Willing Executioners" é um trabalho longo e ambicioso. Daniel Jonah Goldhagen faz alegações sérias, desdenha qualificações e sutilezas e frequentemente recorre a generalizações de larga escala para evitar que qualquer dos culpados escape impune. Seu estilo é apaixonado, raivoso às vezes. O livro é quase que obsessivamente repetitivo, insistindo vezes sem conta no mesmo ponto.
Goldhagem constrói um caso poderoso para sua versão de uma mais antigas, tradicionais e, ultimamente, desacreditadas interpretações do Holocausto. Merece elogios por sua coragem ao fazê-lo. Paradoxalmente, ele alega também oferecer uma interpretação completamente nova do evento, que superará tudo que já foi escrito até hoje.
Essa desconcertante alegação de originalidade baseia-se em sua insistência de que ele é o primeiro estudioso a escrever sobre aqueles que perpetraram as atrocidades. E que pode, portanto, demonstrar conclusivamente que a vasta maioria dos alemães era formada de assassinos, de fato ou potencialmente; e que, contradizendo um suposto consenso de estudiosos, ele pode enfim provar que a principal motivação, o principal motor que explica todas as facetas do Holocausto, é o anti-semitismo europeu em geral e sua variedade alemã em particular.
Dizer que este é o primeiro estudo sobre aqueles que perpetaram as atrocidades é, para usar o termo que Goldhagen aplica à maior parte das interpretações históricas que critica em seu livro, simplesmente falso. De fato, como em seus capítulos sobre o anti-semitismo, Goldhagen mesmo refere-se a diversos estudos que devotaram grande volume de trabalho aos carrascos em todos os níveis do governo nazista.
Ele trata de um tipo de carrasco sobre o qual um dos principais historiadores do Holocausto, Christopher Browning, já publicou um excelente estudo. Não é de fato por coincidência que o livro de Goldhagen chama-se "Ordinary Germans" (Alemães Comuns) e o de Browning "Ordinary Men" (Homens Comuns).
Browning investigou os batalhões de polícia empregados pelos nazistas para perpetrar o extermínio em massa de comunidades judaicas na Polônia entre 1941 e 1943. Sua explicação concentrou-se no Batalhão de Polícia da Reserva 101, de Hamburgo, composto de homens relativamente idosos que haviam sido expostos a um grau relativamente baixo de doutrinação nazista e não demonstravam grande entusiasmo pelo regime de Hitler.
A explicação de Browning é que estes "homens comuns" acostumaram-se ao extermínio em massa durante as primeiras operações e terminaram por encarar a matança (com algumas poucas exceções) como parte do trabalho, ainda que para muitos deles a tarefa possa ter sido desagradável. Browning sustenta que foram circunstâncias e não crenças que fizeram destes homens comuns matadores.
Empregando evidências semelhantes às de Browning quanto ao material humano desta unidade, Goldhagen alega que estes carrascos, precisamente por não terem sido doutrinados pesadamente devido às suas idades, são o melhor exemplo de que não se trata de homens comuns, mas de alemães comuns. Ou seja, eles eram representativos da sociedade alemã, que internalizara o anti-semitismo "eliminacionista" e portanto potencialmente exterminador muito antes que Hitler chegasse ao poder.
Concordo com Goldhagen quando ele afirma que é mais provável que muitos dos matadores fossem motivados por sentimentos anti-semitas e acreditavam de fato que era preciso matar judeus. Mas dizer que representavam todos os alemães no Terceiro Reich e, ainda mais radicalmente, que eram representativos de sentimentos amplamente difundidos entre os alemães, mesmo antes do regime de Hitler, é um julgamento impossível de provar e exagerado demais para que concedamos a ele valor analítico ou histórico.
Discordo de Browning quando ele subestima o impacto da motivação ideológica entre os responsáveis por atrocidades; no entanto, como demonstra a sua meticulosa pesquisa, não se pode descartar a realidade da aclimatação ao assassinato, causada por repetido envolvimento nesse tipo de ato.
Goldhagen não apresenta evidências suficientes para refutar esse ponto, e seu argumento de que não podemos acreditar nas declarações dos carrascos sobre sua relutância inicial em matar, em testemunhos dados 20 anos mais tarde, é muito problemática, pela simples razão de que seu estudo baseia-se quase que exclusivamente nesses mesmos testemunhos. Há muitas evidências que demonstram que uma visão desumanizada dos judeus (e russos, bolcheviques, ciganos, poloneses e outros) desempenhou papel importante na motivação dos matadores de Hitler. Mas as evidências do próprio Goldhagen (bem como diversos outros documentos que ele não cita) sugerem que essas opiniões foram internalizadas em larga medida durante o Terceiro Reich.
Os homens e as mulheres sobre quem escreve estavam envolvidos num empreendimento genocida sem precedentes em ferocidade e escala. Eles estavam obviamente sob a influência de uma grande dose de ideologia nazista, foram expostos a barbaridades intermináveis e a circunstâncias que despertaram neles os mais vis dos instintos, enquanto confrontavam vítimas que haviam sido reduzidas a uma condição na qual pareciam representar perfeitamente a espécie de "Untermenschen" (literalmente, sub-homens) que a propaganda nazista perpetuamente alegava que fossem.
Além do mais, há sérias contradições no relato de Goldhagen. Embora alegue que estes matadores brutais eram "alemães comuns", apresenta diversos matadores que eram alemães étnicos, ou seja, homens e mulheres criados e educados longe da cultura que ele clama estar imbuída de uma espécie única de "anti-semitismo eliminacionista", ou não-alemães -ucranianos, lituanos e assim por diante.
É certo que esses matadores eram ao menos tão anti-semitas quanto os alemães. Mas como enquadrar esse fato à especificidade que Goldhagen atribui aos anti-semitismo alemão?
Ainda mais problemático, talvez, é o fato de que, em seu zelo por demonstrar a desumanidade de todos os alemães, Goldhagen nota que os guardas nas marchas da morte recusavam-se a permitir que os judeus famintos comessem alimentos atirados para eles por habitantes da cidades pelas quais passavam. Ele não menciona o fato de que as pessoas que estavam fornecendo esses alimentos eram, elas também, "alemães comuns". Esses atos de gentileza eram provavelmente ocorrências raras, ainda que Goldhagen cite um número surpreendente de exemplos; mas indicam que alguns alemães, mesmo em 1945, reconheciam que as vítimas judias eram seres humanos.
O aspecto mais perturbador do livro de Goldhagen é sua afirmação de que os alemães "comuns" eram parte de um povo completamente extraordinário, um povo diferente de todos os outros, e que vinha se diferenciando das sociedades vizinhas há praticamente um século. Ele cita a teoria "Sonderweg" (caminho único ou singular, literalmente) aprovativamente, como prova adicional de sua tese, mas a verdade é que seus argumentos diferem bastante do original alemão. Os defensores da idéia de que a Alemanha percorreu um caminho histórico único enfatizaram os fatores estruturais, que ele rejeita liminarmente, enquanto enfatiza a composição mental da psique alemã, um argumento completamente estranho ao corpo de teorias ao qual Goldhagen se refere.
A visão da Alemanha que ele propõe não encontra apoio em evidências, e como todas as visões essencialistas não requer evidências; é incompatível com os limites estritos da análise histórica. As pessoas podem agir como agente porque são quem são. Mas tautologia normalmente não é uma base aceitável para a história.
E quais são as implicações de um conceito desse tipo, a existência de um país de assassinos naturais? O quanto essa suposição é útil para explicar um fenômeno histórico? Há um momento em que o próprio Goldhagen parece reconhecer o perigos de seus argumentos. Ele afirma em nota de pé de página que os alemães mudaram desde 1945, tendo de alguma maneira atravessado um processo muito rápido de democratização e desnazificação, que os transformou praticamente do dia para a noite em homens e mulheres normais (comuns?).
Mas isso é apenas uma nota de pé de página. O que nos resta do livro é a tese de que os alemães são normalmente monstros e que o único papel do regime nazista foi dar-lhes a oportunidade de pôr em prática seus desejos malignos. Essa idéia não é nova. Muitas das vítimas do nazismo, compreensivelmente, a defenderam. Mas como explicação histórica de um evento específico, ela é inútil, e nem deveria ser classificada como histórica.
A morte industrial
O que o Holocausto teve e tem de sem precedentes é um assunto completamente diferente, que Goldhagen evita tocar: a morte industrial de milhões de seres humanos em fábricas da morte, ordenada por um Estado moderno, organizada por uma burocracia conscienciosa e apoiada por uma sociedade ordeira, patriótica e "civilizada".
Nunca, antes ou desde então, um Estado decidiu devotar parte tão grande de seus recursos tecnológicos, organizacionais e intelectuais ao propósito único de exterminar cada membro de uma determinada categoria de pessoas em um processo que combinasse o conhecimento adquirido na produção industrial de massa e a experiência da guerra total. Foi um fenômeno novo: o esforço de produzir cadáveres com os mesmos métodos usados para produzir bens. No caso do Holocausto, porém, a destruição era a meta da produção, e não seu oposto.
Em circunstâncias de matança indiscriminada, o sadismo floresce; mas sadismo não é uma característica singular do Holocausto. O anti-semitismo é um fenômeno pernicioso com longas raízes históricas, mas resta a questão de como ele foi empregado para criar e legitimar gigantescos campos de extermínio, em lugar de ter sido expresso em "progroms" (linchamento de judeus, em russo) selvagens.
Goldhagen acredita que rompeu as muralhas dos argumentos tortuosos e muitas vezes contraditórios de uma vasta literatura analítica, e que nos deu a resposta clara, simples e estranhamente confortadora que ele tanto desejava.
Goldhagen está errado. Ao desdenhar a sutileza e as nuances, e ao confundir paixão com impaciência em relação à complexidade, ele está de fato apelando a um público que só quer ouvir aquilo em que já acredita. Ao fazê-lo, ele obscurece o fato de que o Holocausto foi confuso e horrível demais para ser reduzido a uma interpretação simplista que rouba sua pertinência para o nosso tempo.

Tradução de Paulo Migliacci.

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