São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Anti-semitismo nunca foi só alemão

PAULO CÉSAR DE SOUZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando os americanos destruíram Hiroshima, em agosto de 1945, o serviço de inteligência britânico fez uma experiência instrutiva com físicos nucleares alemães que estavam presos. Deixou que soubessem da nova arma atômica e gravou às escondidas os diálogos entre eles. A reação predominante foi de abatimento: outros haviam realizado aquela façanha, o projeto atômico dos inimigos esteve sempre mais adiantado que o deles. Recriminaram-se porque a ciência alemã havia fracassado. Heisenberg, futuro Prêmio Nobel e autor do Princípio da Incerteza, disse que eles não haviam tido a "coragem moral" de recomendar a seu governo, em 1942, que investisse mais recursos na bomba alemã.
Esse episódio conduz a várias questões. A principal seria, talvez, a da coexistência de genialidade intelectual e estupidez moral nos indivíduos. Ela significaria a derrocada da crença no efeito humanizador da educação -uma crença bem cara ao Iluminismo ocidental. Outra questão, aparentemente mais prosaica, seria: se eminências como estas eram submissas a Hitler, por que estranhar que os alemães comuns também o fossem?
Com relação ao extermínio dos judeus da Europa, seriam esses "ordinary Germans", em conjunto, os "carrascos" de Hitler, como pretende Daniel Jonah Goldhagen em seu livro polêmico? A ênfase na culpa de um povo, enxergando o anti-semitismo deste como algo da sua essência, me parece uma enorme simplificação, por minimizar ou ignorar outros aspectos do problema, aspectos de natureza histórica, antropológica, psicossocial e até mesmo psicobiológica.
Sem dúvida os alemães foram os autores daqueles crimes. Queiram ou não, os líderes nazistas os representaram, e Hitler passará à história como o mais célebre alemão do século 20. O genocídio dos judeus não teria ocorrido sem a participação de cada uma dessas quatro estruturas burocráticas da sociedade alemã: o serviço público, as Forças Armadas, a indústria e o partido. Raul Hilberg, autor do livro mais completo sobre o assunto ("The Destruction of the European Jews", volume de mil páginas, inédito em português), compara o processo do genocídio, por sua amplitude e complexidade, a uma "guerra moderna, uma mobilização, uma reconstrução nacional". Todas as profissões fizeram parte da máquina de destruição, de uma forma ou de outra. Hilberg lembra também que, havendo barreiras psicológicas a um curso de ação, elas chegam a manifestar-se no interior do aparelho burocrático, como ocorreu na Itália fascista em relação aos judeus.
Ainda hoje os alemães se dividem quanto à sua responsabilidade nesses crimes (dizer "ainda" é mera retórica, aliás; o Holocausto aconteceu ontem, 50 anos não são nada, o debate apenas começa). Numa visita à Alemanha tive oportunidade de presenciar, por exemplo, um casal idoso divergindo quanto a isso: ele, um pediatra aposentado, afirmava que sem dúvida era culpado, como alemão; ela, dona de casa na ativa, dizia que o povo fora enganado pelos nazistas. Outra senhora, amiga desta, apareceu um dia contando que providenciara alojamento para uma garota israelense que se achava na cidade (uma pequena cidade) para aprender alemão no Instituto Goethe. "Afinal, depois de tudo o que fizemos com o povo dela...", concluiu.
Mas o anti-semitismo nunca foi apenas alemão. À época da guerra parecia mais intenso no Leste da Europa, entre poloneses, romenos e ucranianos. Historicamente está ligado ao cristianismo, não só à gênese deste, mas à sua preponderância. Em sociedades não-cristãs a minoria judaica não parece ter sofrido perseguição. Na Ibéria muçulmana, as três religiões coexistiam sem maiores atritos. Na Europa em geral, porém, os judeus eram discriminados desde que o cristianismo se tornou a religião do Estado, na Roma do século 4º. Hilberg mostra a coincidência espantosa entre as leis editadas contra os judeus de 1933 a 1945, visando proteger o sangue ariano, e as medidas tomadas por bispos cristãos durante séculos. Leis proibindo o casamento entre judeus e cristãos, proibindo aqueles de frequentar universidades, de exercer cargos públicos, ou obrigando-os a usar distintivos, a viver em guetos, etc.
No filme "Shoah", de Claude Lanzmann, aldeões poloneses afirmam que os judeus foram chacinados porque haviam matado Cristo (Hitler seria então o "vingador do futuro"). Volta e meia é publicado um livro em que se discute o papel dos judeus na morte de Cristo. O anti-semitismo -ou, mais precisamente, anti-hebraísmo- é um fenômeno milenar, a ser abordado no contexto das relações profundas (afetivas, inconscientes) entre judeus e cristãos. Isso foi feito por Rudolph Loewenstein em "Psicanálise do Anti-Semitismo", um pequeno clássico negligenciado nos estudos sobre o tema, publicado na França em 1952.
O que aconteceu na Alemanha de Hitler não se deveu a um traço do caráter alemão. Nenhum povo é intrinsecamente criminoso e sádico, e também nenhum povo tem o monopólio do sofrimento. Em determinadas condições as vítimas podem se tornar algozes, uma nação culta pode regredir momentaneamente à selvageria. Na Alemanha nazista, um complexo embricamento de fatores levou a uma tal regressão. Isolar um deles e elegê-lo como decisivo é uma temeridade.
A guerra de extermínio dos nazistas tem bastante em comum com as chacinas interétnicas que vêm de ocorrer na ex-Iugoslávia e em Ruanda, por exemplo. É certo que duas coisas tornaram o Holocausto sem precedentes: o uso sistemático da tecnologia e a radicalidade de uma ideologia que pregava a liquidação total de um povo.
As pessoas tendem a se espantar com o fato de isso ter surgido em plena Europa civilizada. Há ingenuidade nessa atitude. O equilíbrio em que se baseiam as comunidades civilizadas é um tanto precário, não é mais sólido que o dos indivíduos. Portanto, como lembrou um sábio judeu (Freud), nós não caímos tanto, porque não havíamos subido tão alto como pensávamos.

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