São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Europa esquece mortes no atacado

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A palavra "Europa" é hoje, para muitos, marca de qualidade, sinônimo de tudo o que há de bom, virtuoso e desejável: não só a riqueza, mas sua distribuição; não só a idéia dos direitos humanos, mas sua implementação; não só a democracia representativa, mas a redução ao mínimo de sua corruptibilidade; não só a segurança individual, mas a crescente ausência de coerção com que é conseguida.
O nome do continente poderia, no entanto, mais adequadamente equivaler a "desmemória". Pois, há meio século, geraram-se lá em seis anos mais cadáveres (para nem falar das ruínas) do que toda a violência brasileira seria capaz de produzir em mil. E não foi pela primeira vez, nem mesmo neste século. O fato de que, ao contrário do antigamente chamado Terceiro Mundo onde se mata no varejo, os europeus tirem alguns anos por século para se matarem no atacado ainda não lhes torna menos cruéis e violentas as sociedades. E o papel de tornassol próprio para testar seu verdadeiro caráter são os judeus.
Afã de exterminar
A disseminação e a variedade do anti-semitismo pode revelar de fato quem é quem entre os povos e países do Velho Mundo. E isso por uma razão simples: os judeus foram, no correr dos séculos, a única minoria européia presente e persistente em meio a todos.
O grande teste geral se realizou na primeira metade dos anos 40 e pouquíssimos povos mostraram alguma atitude positiva exceto, talvez, os dinamarqueses, italianos, búlgaros e finlandeses. E não se trata aqui de atribuir responsabilidades coletivas. Mas há seguramente uma história que, digamos, alemães e austríacos assumem ao continuar se definindo enquanto tais. Alemanha e Áustria não querem dizer só Beethoven e Goethe ou Mozart e Klint.
Em maior ou menor grau, destacando-se as exceções acima (que tampouco estiveram inteiramente isentas), todos os países da Europa ocupada e suas populações se envolveram com o Holocausto: da França à Lituânia e da Grécia à Noruega.
Em alguns lugares, o afã de exterminar judeus era tão intenso que os próprios alemães tiveram de intervir para que isso se realizasse de uma maneira, por assim dizer, civilizada: foi o caso da Romênia. Em outros, as atitudes se mostraram um pouco mais nuançadas: colaboração e/ou participação direta no massacre de judeus considerados estrangeiros combinadas com certa proteção, em geral relativa e temporária, dos conterrâneos. Isso aconteceu na França e na Hungria. Há inclusive países que ainda não romperam integralmente seus vínculos com os regimes genocidas dos tempos da guerra: a Eslováquia e a Croácia, por exemplo; e pelo menos um, que tendo estado entre os perpetradores, apresenta-se como vítima: a Áustria. Certos países sofreram imensamente nas mãos dos nazistas e nem por isso abandonaram seu tradicional anti-semitismo: a Polônia e a Rússia. Mesmo as nações neutras ou as que combatiam a Alemanha (e isso também em boa parte do mundo) tiveram oportunidades de sobra de mostrar a que vinham, quando fecharam suas portas aos refugiados.
Mas esses fatos estão todos registrados e já foram devidamente reconhecidos, salvo por indivíduos e grupos marginais. Onde está então a desmemória? Meio século após o ocorrido, trata-se sem dúvida de algo mais sutil. Se, por um lado, a culpa coletiva pode ser utilizada na defesa de gente objetivamente criminosa, sob a forma do argumento "Por que eu, se todo mundo também fazia?", a identificação e condenação de alguns poucos assassinos serve frequentemente para inocentar o restante das populações.
Assim, o Holocausto não teria sido perpetrado pelos europeus, mas tão só pelos alemães, e não, a rigor, pelo povo alemão, mas apenas pelos nazistas através de seu instrumento, as SS. Salva-se assim não só a honra da Alemanha (que se constitui, afinal, de seu povo e não de uma ocasional malta de malfeitores) como também a da própria Wermacht, o Exército nacional, que teria lutado profissional e honradamente em prol de interesses justos ou pelo menos compreensíveis.
Assim, ao mesmo tempo que o holandês Ian Buruma defende em seu "Wages of Guilt" (Salários da Culpa) a tese de que os alemães assumiram uma parte muito maior da responsabilidade por seus crimes durante a Segunda Guerra do que os japoneses, o historiador israelense Omer Bartov argumenta em "Hitler's Army" (O Exército de Hitler) que, sobretudo na frente oriental, a Wermacht se tornou o verdadeiro exército ideológico de algozes do Fuehrer e cometeu, em grande escala, todo tipo de atrocidades.
Criação cristã
A grande e profunda desmemória diz, porém, respeito a algo mais desagradável de se pensar do que a culpa de um país ou povo: ela se refere às raízes profundas do anti-semitismo. A Europa que o inventou levava, não faz tanto tempo, um outro nome: cristandade -e se definia, como tantas outras culturas ou civilizações, pela sua religião, no caso, o cristianismo. O Holocausto, no qual toda a Europa se envolveu, é uma criação especificamente cristã e de nada adianta argumentar que os nazistas eram neo-pagãos ou qualquer coisa semelhante, porque o resto do continente não o era, e mesmo eles eram apenas superficialmente anti-cristãos.
Desde o começo, entre nazismo e anti-semitismo ou, antes, entre nacionalismo e xenofobia ou, antes ainda, entre cristianismo e exclusivismo religioso, parece ter ocorrido, mais que uma simbiose, um entrelaçamento profundo o suficiente para resultar em sinergia. Em cada uma dessas duplas, um termo se alimentou do outro e ambos cresceram. E, se é verdade que o rancor do cristianismo em face dos judeus talvez não seja em sua origem mais que uma triste história de amor não-correspondido, o produto final, em todo caso, com suas contradições e ramificações, chama-se Europa. Aliás, Holocausto.

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