São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Brava gente brasileira

IVAN IZQUIERDO

Há dois mitos paralelos que nos foram enfiados goela e cérebro abaixo pelos donos do poder: 1) brasileiro não tem garra; argentino é que tem ou então castelhano em geral ou então coreano ou qualquer um; aqui, o povo aguenta tudo sem piscar: reduções salariais, demissões, salário mínimo de fome; por muito menos do que isso, lá fora o povo sai na rua. 2) Ao mesmo tempo, graças a Deus que aqui somos de boa paz; isto é uma ilha de tranquilidade; olha só a Bósnia, a Tchetchênia, que horror, isso jamais aconteceria aqui.
Mentiras. Brasileiro tem garra, sim. Esse pessoal que viaja comigo no ônibus às 7h para ganhar R$ 100 e à noite volta exausto para sua favela para enfrentar policiais assassinos e traficantes assassinos e, ainda assim, leva pão para seus filhos... A única coisa que tem, na verdade, é garra. Precisa de muita garra para fazer isso todos os dias, sem nenhuma esperança real de dias melhores.
Argentino, uruguaio, coreano também tem garra; só que come um pouco mais e conseguiu, graças a isso, alguns anos a mais de escolaridade; por isso mesmo continua comendo mais. Eis aí a única diferença.
A diferença tem nome: Sarmiento na Argentina, Rodó no Uruguai. Ambos implantaram, em suas terras, o ensino público, universal e gratuito; coisa que aqui ainda é uma utopia, e agora, para cúmulo, estão querendo liquidar de vez, pelo que se vê. Talvez, lá, Sarmiento e Rodó se chocaram contra uma elite dirigente menos pérfida: a escravatura foi de fato abolida no Prata em 1813, enquanto aqui, como todos sabemos, ainda continua. O escravagista não tem nenhum interesse em educar sua mão-de-obra.
Brasileiro não aguenta qualquer coisa e não leva desaforo para casa podendo evitá-lo. Botou Fernando para correr uma vez; pode fazê-lo duas, se não prestar muita atenção no sobrenome. Garra é o que não falta; informação e oportunidade é o que costuma faltar.
Brasileiro tem garra, sim; não é esse o problema. É um povo bravo; mas, infelizmente, também brabo; aí é que está o problema. Desenvolveu um ódio, uma raiva, um ressentimento feroz e cruel como é difícil ver em qualquer outro país do mundo. Isto está muito longe de ser uma ilha de tranquilidade; os números falam mais alto.
Aqui morreu mais gente por armas de fogo em 1995 do que na Bósnia, Tchetchênia, Haiti e Somália juntos. No trânsito, morreram 50 mil num ano; tantos como a soma total dos mortos nas guerras sujas da Argentina e Peru (oito anos cada) ou dos Estados Unidos no Vietnã (oito anos também). Em cada um desses países, esses 20, 30 ou 50 mil mortos em oito anos causaram traumas terríveis e são ainda comentados diariamente, anos depois.
Aqui, a vida humana não vale nada mesmo, e ninguém fala nos 50 mil que caíram só na rua, só num ano. Assassinatos, há 20 por dia em São Paulo (1,8 em Nova York, cidade que aqui é tida como violenta). Em Belo Horizonte, a polícia protesta por melhores salários fazendo chacinas. Não, brasileiro não é de boa paz: é um dos povos mais brutais que existe. Não sei se a Vieira Souto será uma ilha de tranquilidade; o resto do Brasil certamente não é.
Vamos assumir nossa gangrena, parar de olhar para o outro lado, deixar de insistir nessa idiotice de que as virtudes inatingíveis e os piores defeitos são dos outros e nós vivemos longe deles todos.
O Uruguai recebe mais turistas por ano que o Brasil: por algo será. Ou vamos continuar nos iludindo com aquilo de que o Rio é lindo, as mulatas, sei lá o quê? Turista lê jornal como eu, conhece os números que citei acima e foge da violência. Quer é passar férias, não dias de terror. A menos que procure turismo sexual, de preferência com crianças. Aí sim vem para o Brasil mesmo. Essa é a imagem que há lá fora do Brasil; e a fotografia deles não mente. É retrato fiel.
A violência virou parte da alma nacional; e ficou triste e trágica essa alma. Que por um lado põe no sambódromo (não mais na rua...) um "folie-bergeresco" Carnaval para inglês ver e, por outro, mata 219 pessoas durante esses mesmos dias de Carnaval em São Paulo e quase 200 no Rio... Sem sombra de dúvida é mais sensato ir passar o Carnaval no Uruguai. Até na Suíça!
Pensemos nesses números. Pensemos que não chegamos a isso por falta de garra porque garra tem de sobra. Estamos assim porque nossos mandantes nos fizeram acreditar que esse horror que somos, esse que lá fora se enxerga e nos retrata, não existe, nós somos tranquilos e pacatos. Tranquilos e pacatos, uma ova. Temos que parar isso logo, já, hoje. Amanhã já é tarde. Precisa de salários, precisa de educação e precisa de polícia decente. As três coisas. E parar com a mentira para poder criar esperanças.
Porque a alternativa, como todos sabemos, é... Por falar nisso, ouvi dizer que o FHC está querendo ser reeleito. Será verdade, meu Deus? Sorrisinhos de "cocktail-party", conversinhas com japonês que depois te sacode uma sanção da OMC na cabeça, frasezinhas de efeito, o banco da nora, votinhos comprados por pouco dinheiro, pequenas patifarias, escândalos varridos para debaixo do tapete, contas malfeitas, um país imenso que chora tratado como coisa trivial... Enquanto na rua, que é onde interessa, onde o Brasil dói, cada dia tem mais miséria, mais medo, mais mortes, e mais quatro prementes, terríveis anos perdidos, anos que estão roubando de meus filhos, de meus netos.

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