São Paulo, terça-feira, 14 de maio de 1996
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A prova escrita

JANIO DE FREITAS

Muitos mistérios que envolveram a morte de Carlos Marighella mantêm-se impenetráveis até hoje, passados quase 28 anos, e parte deles talvez jamais se esclareça, mas a maneira de sua morte nunca entrou no rol das obscuridades. Os policiais matadores, tão interessados em forjar uma troca de tiros, na noite mesma da morte documentaram a comprovação de assassinato.
No momento em que a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos é confrontada com o problema de reconhecer, ou não, Marighella como vítima do Estado, nada melhor do que um registro feito pelos próprios representantes desse Estado e, depois, reconhecido como autêntico e incontestável na Justiça Militar do mesmo Estado. Agentes da repressão e Justiça Militar representantes, não só do Estado, senão também do regime de ditadura militar então vigente. Não há como questionar a consistência do documento, portanto.
Complemento do registro policial de ocorrência, referente à morte, o auto de apreensão do que foi encontrado com Marighella apresenta, como arma, apenas um revólver 32, com "cinco cápsulas com seus projéteis intactos". A descrição meticulosa da arma e da carga não inclui a existência de nem ao menos uma cápsula já detonada.
Em princípio, poderia ter havido troca de tiros, como alegaram os agentes da repressão, quando Marighella recebesse voz de prisão, ocorresse isso dentro ou fora do Volks em que seu corpo foi exibido, cheio de balas. Mas não poderia haver troca de tiros entre os autores de um cerco e o cercado que não usou a arma cuja posse lhe foi atribuída.
Este e muitos outros aspectos que desmontam a versão difundida pela ditadura, e situam Marighella como vítima de um assassinato planejado para ser só isso mesmo, tornaram-se públicos desde 71, menos de dois anos depois do episódio. Foram expostos na defesa brilhante e corajosa que o advogado Mário Simas fez, na Justiça Militar, dos frades dados à época como facilitadores do encontro de Marighella por seus matadores.
Entre as qualidades que tenha o laudo do perito Nelson Massini, feito agora sobre fotos do cadáver, não parece haver a da originalidade. Simas foi um daqueles advogados de tanta competência quanto valentia, aos quais muitos devemos gratidões impagáveis, e que não se dobraram à conveniência de fechar os olhos a uma ou outra coisa mais denunciadora da alma da ditadura militar. A Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos encontrará rico material na defesa de Simas, desvendando toda a cenografia que tentou, em vão, descaracterizar o assassinato.
Apesar da delicadeza de sua tarefa, os que estão conduzindo a revisão dos episódios de que resultaram em mortos e desaparecidos, por motivos políticos, vêm realizando trabalho muito bom. O que se deve, em especial, às qualidades pessoais e profissionais de José Gregori, advogado que tem o título de chefe de gabinete do ministro da Justiça para conduzir a limpeza das manchas de sangue e de lágrimas feitas na ditadura.
O caso de Carlos Marighella é mais um, não é o último. E, de certa maneira, não se encerrará de todo: há que continuar buscando esclarecer os mistérios nele existentes, como a autoria verdadeira da operação que o localizou para assassinar.

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