São Paulo, quinta-feira, 16 de maio de 1996
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A problemática valorização do real - 2

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

PAULO NOGUEIRA
BATISTA JR.
No artigo da semana passada, examinei algumas das dificuldades conceituais e empíricas presentes em todas as discussões sobre "defasagem" cambial.
Lembrei que indicadores como a taxa de câmbio real, calculada a partir de índices de preços ao consumidor, são contestados por diversos analistas.
Alega-se, por exemplo, que estimativas do efeito do câmbio sobre a competitividade internacional não devem ser distorcidas pelo uso de deflatores compostos por preços que não têm relação direta com o custo de produção, tais como bens de consumo, aluguéis residenciais, serviços pessoais, mensalidades escolares etc.
Sugere-se que os índices relevantes seriam índices de preços no atacado, que supostamente refletem melhor a evolução dos custos de produção.
Por esse critério, continua o argumento, a valorização cambial acumulada desde junho/94 é da ordem de 15%, muito menor do que os cerca de 30% de valorização calculados a partir dos preços ao consumidor.
O argumento parece plausível, mas não se sustenta. Usar índices de preços no atacado para deflacionar o câmbio é tão absurdo quanto usar o Índice Geral de Preços da FGV para reajustar o salário mínimo ou os benefícios previdenciários.
Vejamos por quê. O problema básico está no fato de que os índices de preços no atacado são, em geral, fortemente influenciados por produtos comercializáveis internacionalmente, os "tradeables".
Ora, programas de estabilização do tipo do Plano Real recorrem à estabilização do câmbio nominal e à liberalização comercial justamente para estancar o crescimento dos preços dos "tradeables".
Nesse contexto, sustentar que não há "defasagem" cambial com base em índices de preços no atacado constitui uma espécie de petição de princípio.
A "âncora" cambial é aplicada para estabilizar os preços em reais dos "tradeables" e, em seguida, com a maior cara-de-pau, índices fortemente influenciados por "tradeables" são utilizados para demonstrar que a valorização real não é tão significativa!
Na verdade, tudo isso é velho como Matusalém. Formados, em geral, dentro do paradigma americano, os economistas desenvolveram uma aguda "cliofobia", uma aversão sistemática à história em geral, inclusive à história econômica e até mesmo à história do pensamento econômico.
Assim, os mesmos debates se reproduzem diversas vezes, sem que os participantes se dêem conta de que estão retomando antigos argumentos e dilemas.
Essa questão da escolha do tipo de índice de preços relevante para deflacionar o câmbio nominal foi objeto de intensa discussão entre o mais importante economista do século 20, John Maynard Keynes, e os defensores da restauração do padrão-ouro, em meados da década de 20.
Keynes escreveria, alguns anos depois, que a Inglaterra não teria tomada a fatídica decisão de voltar ao padrão-ouro em 1925, na paridade de pré-guerra, se não se tivesse firmado "o hábito de considerar índices no atacado como indicadores satisfatórios do poder de compra em geral."
Na época, observou Keynes, o Tesouro inglês e o Banco da Inglaterra foram levado à falsa conclusão de que, como o índice de preços no atacado, que era quase um índice de "tradeables", se ajustava rapidamente à valorização nominal da libra esterlina, o mesmo seria verdadeiro para preços em geral.
Em consequência, a Inglaterra acabou prisioneira de um câmbio sobrevalorizado e submetida às tensões econômicas, sociais e políticas associadas à tentativa, afinal frustrada, de forçar a compressão dos salários e demais custos nominais.
O ministro da Fazenda responsável pela decisão de 1925, ninguém menos que Winston Churchill, diria mais tarde que esse foi "o maior erro de sua vida".
"De te fabula narratur". Não vamos ressuscitar no Brasil as mesmas falácias que contribuíram para que a Inglaterra convivesse permanentemente com níveis elevados de desemprego, vários anos antes da Grande Depressão dos anos 30.
Afinal, não é tão difícil perceber por que índices de preços ao consumidor podem ser usados legitimamente como deflatores da taxa de câmbio.
Não se deve perder de vista, por exemplo, que os índices de preços ao consumidor afetam os salários nominais, ainda que estes não estejam formalmente indexados.
Se tomarmos, por exemplo, os dados referentes à indústria do Estado de São Paulo, calculados pela Fiesp, veremos que o salário nominal por hora aumentou, em média, 60% entre junho de 1994 e março de 1996.
No mesmo período, o câmbio nominal cresceu apenas 18%. Ou seja: o salário industrial medido em dólares aumentou nada menos que 35% desde a introdução do real.
Aumentos dessa ordem de magnitude não dão muita margem a tergiversações. Como argumentar de forma plausível que uma valorização dessa dimensão pode ser compensada por ganhos de produtividade na indústria?
Parece difícil imaginar que o governo não tenha a percepção do problema ou que se possa atribuir a relativa inércia da política cambial exclusivamente a erros conceituais e de avaliação da equipe econômica, ainda que se admita que ninguém está a salvo de acreditar em falácias tranquilizadoras.
Na semana que vem, tentarei mostrar que a demora em enfrentar o problema não decorre apenas, nem principalmente, do receio de que uma correção cambial venha a aumentar a taxa de inflação, mas sim das armadilhas financeiras em que o Plano Real foi aprisionado.

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