São Paulo, sábado, 18 de maio de 1996
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Fim do casamento

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Em meu livro "Direito Constitucional Brasileiro" (Saraiva, 364 páginas), escrevi que a Carga Magna "considera o termo 'família' em senso estrito, ou seja, de conjunto de pessoas formado pelos pais, casados ou não entre si, e seus filhos, em convivência estável". Anotei, porém, que "a base jurídica da família continua sendo o casamento" e, ainda no mesmo capítulo, que a proteção do Estado se limitava à relação estável entre o homem e a mulher, não se estendendo a comunidade formada por pessoas do mesmo sexo.
Nesse livro, de análise do direito constitucional brasileiro como ele é, defini minha posição pessoal quanto à família. É necessário recordá-lo, para que o leitor entenda melhor a crítica da lei nº 9.278, publicada no último dia 13, que regula as disposições do parágrafo 3º do art. 226 da Constituição. O referido parágrafo reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, para proteção do Estado. Traz, porém, a imposição final do dever legal de facilitar a conversão da união estável em casamento.
A lei nº 9.278 introduziu terminologia nova. Reconhece "como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e de uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família", mas tem alguns furos. Revogando parte da lei nº 8.971/94, nada diz, por exemplo, a respeito dos conviventes casados com terceiros, separados de fato -mas não de direito- e unidos a outras pessoas do sexo oposto, com caráter permanente. Não são raros os casos do que a sabedoria popular chama, com alguma graça, de "casa civil" e "casa militar", nos quais a pessoa (geralmente, mas não exclusivamente, o homem) casada tem família no lar oficial, mas mantém outro, respeitável em face da comunidade, com ou sem filhos. A lei não exclui essas hipóteses, de modo expresso, numa insuficiência criticável, ante o texto constitucional, analisado no livro referido de início. Contudo a provável orientação dos tribunais dirá que o objetivo de constituição de família, no singular, é incompatível com a existência de duas ou mais famílias.
A lei também não explicita o adjetivo "duradoura", com o qual qualifica a convivência formadora da entidade familiar. Uma semana? Um ano? Cinco anos? Só a jurisprudência vai responder a tais perguntas. A convivência se submete, porém, a três requisitos: deve ser pública, ou seja, conhecida de todos no ambiente em que os companheiros vivam; deve ser contínua, não sendo computados períodos interrompidos; e deve ter o objetivo de constituir família, com ou sem filhos.
A lei mencionada nada estabelece quanto à obrigação de residirem os companheiros sob o mesmo teto ou de poderem ocupar casas separadas. Os tribunais apreciarão melhor a questão e, daqui a uns 15 anos, consolidarão o entendimento comum. Nunca antes, tendo em conta a proverbial demora na uniformidade sumulada da interpretação judicial. O verbo conviver não significa necessariamente viver junto, mas viver com intimidade, ainda que sob tetos diversos. Todavia, nenhuma posição a respeito é definitiva.
O contrato escrito entre os companheiros passa a ser imprescindível, para determinarem o que for de seu interesse quanto ao patrimônio formado durante a convivência. Se nada estipularem, a convivência presumirá no regime de condomínio civil, na condição de sócios, a partir do momento em que se iniciar.
Pode-se discutir se a lei, como um todo, é constitucional. Embora facilite a conversão em casamento, mediante requerimento ao oficial do registro civil, ela abre amplo leque para a união fora do matrimônio. Aponta no rumo contrário ao do parágrafo 3º, que pretendeu regular. Facilita muito mais a preservação da convivência duradoura, desequilibrando o tratamento dado à instituição matrimonial. Prenuncia o fim do casamento civil.

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