São Paulo, sábado, 18 de maio de 1996
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"Justiça virtual"

DYRCEU CINTRA

"O único progresso verdadeiro é o progresso moral. O resto é simplesmente ter mais ou menos bens."
José Saramago, na Folha (27/01/96)
A iniciativa do juiz Luiz Flávio Gomes de realizar interrogatório de réu preso a distância, por meio de computadores interligados em rede (Folha, 27/04/96), foi bastante difundida nos últimos dias nos meios forenses. A experiência, saudada como um avanço rumo à modernização da Justiça, exige atenção dos que se preocupam com o sentido garantista do processo penal.
O devido processo legal exige que o preso seja apresentado ao juiz para ser ouvido com todas as garantias. O Pacto de Direitos Civis e Políticos da ONU, adotado na legislação brasileira por força do decreto 591, de 06/07/92, diz com todas as letras que "qualquer pessoa presa ou encarcerada deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz".
Como o artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição prevê que os direitos e garantias nela expressos "não excluem outros decorrentes (...) dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte", interrogar pessoa presa de outra forma que não a assegurada no referido pacto é violar a própria Constituição. Não fosse isso, haveria razões de ordem política para repudiar a novidade.
A legitimação material do juiz como agente público no Estado democrático se dá por sua aptidão cotidiana à tutela dos direitos fundamentais do homem (Luigi Ferrajoli, "Diritto e Ragione"). Assim, para o exercício de tal atividade, sobretudo em razão das inúmeras denúncias de desrespeito aos direitos humanos por parte de agentes da repressão em geral, parece-me fundamental que o juiz converse com a pessoa do réu e não com uma representação de quem permanece constrangido num presídio, do outro lado da linha.
Convém, por fim, que não se abra caminho para uma certa "assepsia" desejada por alguns operadores jurídicos em seus ambientes de trabalho. Pessoas que não querem assumir responsabilidades profissionais e de cidadãos em face da iniquidade de nossas prisões e do ambiente criminógeno que decorre do sistema econômico-social estarão, daquela forma, à vontade para afastar cada vez mais os presos de suas vistas, renegando o sentido garantista do processo penal. Ainda que tenha o juiz Luiz Flávio pensado, ao contrário, na agilização do processo em benefício do preso, é bom que reflita melhor sobre o assunto. Há maneiras fáceis e legais de agilizar o processo, desburocratizando, sobretudo, a requisição de presos, mediante uso do fax.
A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado brasileiro. Mas haverá espaço para o homem se a experiência do interrogatório "online" se disseminar? Estaremos no rumo de uma "Justiça virtual", na contramão dos reclamos de um Poder Judiciário mais acessível, que se aproxime mais da realidade social?

Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior, 40, juiz de direito em São Paulo, é membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e da Associação Juízes para a Democracia.

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