São Paulo, sábado, 18 de maio de 1996
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Vozes d'África

RUBENS RICUPERO

No domingo passado, pude finalmente penetrar no coração da África. Após duas semanas entre Pretória e Johannesburgo, a dourada máscara de Primeiro Mundo da África do Sul, viajei para o nordeste do país, no sentido real e figurado, perto da fronteira com Moçambique.
Lá, tive um encontro com os líderes de uma comunidade de 2.000 pessoas do povo Shangane, que vive de ambos os lados da fronteira.
Havia serviço religioso na igreja de Jesus Nazareno e o coro cantou para nós um dos hinos, misto de "spirituals" do sul dos EUA e hino anglicano.
Nunca em minha vida tinha ouvido vozes tão poderosas e comoventes.
Cantavam o refrão: "Somos todos filhos do mesmo Deus". A solista, uma mocinha magra de seus 17 anos, cantava como um anjo, não desses melífluos que se imaginam ao som da harpa. Era um anjo do Apocalipse, de voz de trovão e tempestade.
Sabendo que alguns eram refugiados de Moçambique, perguntei se ainda se lembravam da língua portuguesa.
Adiantou-se um velhinho de barba branca, perto dos 90 anos, querendo beijar-nos as mãos a todos, comovido por falar a língua da sua infância.
Vendo aquela pobre gente, com seus modestos mas coloridos trajes de domingo, de alegria resplandecente, lembrei-me do Brasil, tão distante e tão perto.
Lembrei-me do mundo que devemos à África, de Castro Alves, do nosso povo, tão parecido com esse, na sua bondade essencial, na sua pobreza evangélica. "É gente humilde, que vontade de chorar!".
Quem me lê talvez pergunte, a esta altura: "O que tem isso tudo a ver com uma coluna teoricamente dedicada a temas econômicos?"
A resposta é simples. Viemos à África do Sul para a 9ª Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), cujo tema central foi "Globalização e Marginalização".
Isto é, como evitar que a unificação do espaço econômico em escala planetária acabe, contraditoriamente, por marginalizar da economia mundial países inteiros e até continentes?
O problema é particularmente agudo na África. Dos 48 países de renda "per capita" inferior a US$ 350 por ano, nada menos do que 33 se localizam no continente africano.
Calcula-se hoje que cerca de 2 bilhões de indivíduos vivem praticamente excluídos da economia mundial.
A solução é dar a essa gente condições de competir por meio do comércio, de atrair investimentos para diversificar economias dependentes de um ou dois produtos, de criar uma estrutura produtiva. Em outras palavras, atenuar e completar a lógica da competição com a lógica da solidariedade.
Um dos projetos concretos aprovados na reunião é precisamente destinado a ajudar comunidades marginalizadas.
Juntamente com o governo de Luxemburgo e um dos grandes bancos daquele país, vamos canalizar, de início, US$ 100 milhões para pequenos empréstimos a microempresários capazes de gerar empregos.
Apesar da pobreza em recursos naturais, da aridez da zona visitada, voltei com o coração aquecido pela esperança.
Em primeiro lugar, por encontrar uma comunidade decidida a ajudar-se a si própria, com líderes extraídos do povo, professores, comerciantes modestos, agricultores, mas de grande lucidez e realismo. Em segundo lugar, pela ênfase absoluta que todos dão à educação.
Nesse lugar perdido, existem três escolas primárias -uma delas construída pelo povo, sem esperar pelas autoridades-, 12 creches e uma escola secundária, pobre mas completa, até com laboratório e ensino pragmático de ciências, de contabilidade e de administração.
Aqui também me lembrei do Brasil, mas com inveja. Como se vê, há coisas que podemos aprender dos sul-africanos, no espírito da frase de Bernardo Pereira de Vasconcelos: "A África civiliza a América".

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