São Paulo, sábado, 18 de maio de 1996 |
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Pogorelich traduz "novo Chopin"
ARTHUR NESTROVSKI
Entre os maiores pianistas deste século, só Guiomar Novaes era capaz de dar um acento mais infantil aos diabolismos de Chopin. Mas é preciso acrescentar o nome do pianista croata Ivo Pogorelich, que se apresentou na última quarta-feira. Em suas "Notas sobre Chopin", de 1932, André Gide reclamava das distorções sofridas por essa música, transformada em "Chopin dos virtuosos" ou "das debutantes". Sessenta anos mais tarde, a situação é outra; e o compositor polonês tem lugar de honra não só nas salas de concerto, mas também na literatura especializada. Em seu livro "The Romantic Generation", Charles Rosen dedica 200 páginas a ele, mostrando como gênio e engenho se combinam neste idioma único, mistura refinada do contraponto bachiano com a ópera lírica italiana. Ivo Pogorelich -suposto "romântico", temperamental e nervoso, a se julgar pelas revistas e capas de CD -revelou-se intérprete predestinado deste novo Chopin. Controlado e sóbrio no palco, ele é um virtuose a serviço da música, e não de si próprio. A sentimentalidade das entrevistas e fotos não corresponde, de forma alguma, a uma inteligência musical mais alta até do que a inteligência dos dedos. Para todos os efeitos, Pogorelich tocou como se não estivéssemos lá. Tocou para a música, com uma concentração e integridade absolutas. Na sequência de tantos concertos "blasés" ou "light", ao estilo da cidade, o seu recital foi de uma honestidade comovedora. É Chopin vivido; de uma extravagância difícil de classificar. Torrentes de arabescos se multiplicam num espaço onde, paradoxalmente, nenhuma nota é demais. Nos "Scherzi", em particular, Chopin é, como queria Gide, compositor do pensamento reticente, de uma música em curso de invenção, que "supõe, insinua, seduz, persuade; e raramente afirma". Quase num outro extremo ficam os "Quadros de uma Exposição", de Mussorgski, com que Pogorelich abriu o programa. Só quase, porque a retórica direta de Mussorgski ganhou, com ele, uma retradução das sofisticações de Ravel, cuja orquestração dessa peça é mais conhecida que o original. É uma música que, ao final, não cabe mais no seu século, muito menos no piano; e Pogorelich, aqui, deu mostras do que pode uma mão esquerda. Infelizmente, a acústica seca do teatro não ajuda; um fortíssimo mais se vê do que se escuta. O mesmo vale para passagens delicadas. Pogorelich contava visivelmente com a ressonância dos acordes. Só visivelmente, porque o motor do ar condicionado transformou a música em cinema mudo. Não sei se a acústica desta sala comprida e baixa tem conserto. Mas o ar condicionado é fácil: basta desligar. Seria injusto acabar a resenha numa nota negativa. Foi um dos concertos mais lindos da temporada -e das próximas, porque não vai ser fácil escutar outro igual. Enigmático, ambíguo, Chopin é um dos compositores do nosso tempo; e Pogorelich, um de seus maiores decifradores. Texto Anterior: Falabella abusa em show de humor Próximo Texto: Darcy Ribeiro é indicado ao Troféu Juca Pato Índice |
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