São Paulo, sábado, 18 de maio de 1996
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Pogorelich traduz "novo Chopin"

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Scherzo", em italiano, quer dizer "brincadeira", mas os quatro "scherzi" de Chopin (1810-1849) são composições tão complexas que raramente se pensa no significado original da palavra.
Entre os maiores pianistas deste século, só Guiomar Novaes era capaz de dar um acento mais infantil aos diabolismos de Chopin. Mas é preciso acrescentar o nome do pianista croata Ivo Pogorelich, que se apresentou na última quarta-feira.
Em suas "Notas sobre Chopin", de 1932, André Gide reclamava das distorções sofridas por essa música, transformada em "Chopin dos virtuosos" ou "das debutantes".
Sessenta anos mais tarde, a situação é outra; e o compositor polonês tem lugar de honra não só nas salas de concerto, mas também na literatura especializada.
Em seu livro "The Romantic Generation", Charles Rosen dedica 200 páginas a ele, mostrando como gênio e engenho se combinam neste idioma único, mistura refinada do contraponto bachiano com a ópera lírica italiana.
Ivo Pogorelich -suposto "romântico", temperamental e nervoso, a se julgar pelas revistas e capas de CD -revelou-se intérprete predestinado deste novo Chopin.
Controlado e sóbrio no palco, ele é um virtuose a serviço da música, e não de si próprio. A sentimentalidade das entrevistas e fotos não corresponde, de forma alguma, a uma inteligência musical mais alta até do que a inteligência dos dedos.
Para todos os efeitos, Pogorelich tocou como se não estivéssemos lá. Tocou para a música, com uma concentração e integridade absolutas. Na sequência de tantos concertos "blasés" ou "light", ao estilo da cidade, o seu recital foi de uma honestidade comovedora.
É Chopin vivido; de uma extravagância difícil de classificar. Torrentes de arabescos se multiplicam num espaço onde, paradoxalmente, nenhuma nota é demais.
Nos "Scherzi", em particular, Chopin é, como queria Gide, compositor do pensamento reticente, de uma música em curso de invenção, que "supõe, insinua, seduz, persuade; e raramente afirma".
Quase num outro extremo ficam os "Quadros de uma Exposição", de Mussorgski, com que Pogorelich abriu o programa. Só quase, porque a retórica direta de Mussorgski ganhou, com ele, uma retradução das sofisticações de Ravel, cuja orquestração dessa peça é mais conhecida que o original.
É uma música que, ao final, não cabe mais no seu século, muito menos no piano; e Pogorelich, aqui, deu mostras do que pode uma mão esquerda.
Infelizmente, a acústica seca do teatro não ajuda; um fortíssimo mais se vê do que se escuta. O mesmo vale para passagens delicadas.
Pogorelich contava visivelmente com a ressonância dos acordes. Só visivelmente, porque o motor do ar condicionado transformou a música em cinema mudo. Não sei se a acústica desta sala comprida e baixa tem conserto. Mas o ar condicionado é fácil: basta desligar.
Seria injusto acabar a resenha numa nota negativa. Foi um dos concertos mais lindos da temporada -e das próximas, porque não vai ser fácil escutar outro igual.
Enigmático, ambíguo, Chopin é um dos compositores do nosso tempo; e Pogorelich, um de seus maiores decifradores.

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