São Paulo, sábado, 18 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Marlyse inventa o grande folhetim brasileiro

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Marlyse Meyer deu à literatura brasileira, com seu livrão "Folhetim", um clássico inclassificável. Em que estante colocá-lo? Na das "Histórias" da literatura, sem dúvida. Mas é uma história tão peculiar e tão diferente das demais que hesitamos.
E, como vamos aprender no decorrer do livro inteiro, a resposta foi antecipada pela autora. No seu próprio título. Ela nos deu, afinal, um folhetim. Filho único. Com iluminação e nicho próprios na biblioteca brasileira.
Carregando sua vasta erudição com a leveza de quem viaja sem bagagem (como se tivesse casa própria e biblioteca no Brasil e na França, as duas grandes referências desse livro despretensioso e monumental), Marlyse nos garante que o Brasil possui pelo menos um grande folhetim, escrito em 1886, por um pernambucano chamado Carneiro Vilela, com o excelente título folhetinesco de "A Emparedada da Rua Nova". Mas será que, além de Marlyse, alguém leu "A Emparedada"?
Pelo que nos conta "Folhetim", o gênero foi desbragadamente lido no Brasil, mas, aqui plantado, não pegou. Como lembrei nesta coluna outro dia, o brasileiro aceita, até com certa condescendência, a acusação de ser malandro, trapaceiro, finório. Mas recusa qualquer sugestão de que seja um homem cruel, mau.
Acontece que, à base do folhetim, estão a crueldade, a luta de classes, o ódio e a vingança. Importantes escritores brasileiros até que levavam jeito para o folhetim, como Aluísio Azevedo e Raul Pompéia, que se valiam da corte para tecer seus dramas.
Mal ou bem o folhetim acabava em pura troça e conversas com o leitor, por falta de assassinatos e estupros, ou não davam em nada parecido com as tragédias de Ponson du Terrail, de Xavier de Montépin, do velho Dumas.
Como disse um cronista da época, citado no livro: "Os esqueletos e as caveiras do Paço têm fornecido assunto a nada menos que três romances, que, valha a verdade, bem podiam ficar guardados no fundo do tinteiro".
Entre parênteses: nossa literatura só assumiu outro dia a secreta crueldade que move a sociedade brasileira. Foi nos contos e romances de Rubem Fonseca. Ali fazemos nossa estréia, tanto na brutalidade justificável dos desvalidos de "O Cobrador" como na suave fúria de "Passeio Noturno", em que o entediado herói sai de madrugada no carro de luxo para atropelar e matar. E, como quem tomou um sedativo, conciliar depois o sono dos justos. Fecha parênteses.
E voltemos a Marlyse, que todo o espaço seria pouco para abranger uma pequena parte de seu "Folhetim": duvido que "A Emparedada" lhe chegue aos pés.
Marlyse nos conta que, durante algum tempo, perguntou a si própria por que os brasileiros se apaixonaram perdidamente por histórias que refletiam uma França tão diferente de nós. Refletiam a Paris nova, a do prefeito e barão de Haussmann, que a partir de 1853 ia construir aquele centro de Paris, que seria dos novos-ricos e, até hoje, dos turistas deslumbrados. E expulsar os pobres para os subúrbios, "brutalmente isolados do coração de Paris". Nascia Paris e nascia a luta de classes.
Por que o Brasil rural e atrasadão se apaixonou pelos livros que descreviam uma sociedade sofisticada, em plena revolução industrial, roída apenas pelo medo que lhe infundia a plebe agora isolada, mas que se alfabetizava e lia, ao acabar o folhetim, textos de um certo Marx?
Nosso medo paralelo, viu então Marlyse, vinha dos escravos, afinal meio agitados aqui, em parte porque começavam a chegar a nós os trabalhadores livres, sobretudo italianos, também explorados na lavoura, mas já ardendo da leitura de folhetins e das cartilhas anarquistas.
Ao mesmo tempo, puxada na França por cavalos a galope e aqui por juntas de bois incansáveis, crescia a imprensa. O folhetim dramatizava e dava velocidade ao jornal.
Na França, na Europa inteira, foi a época da grande alfabetização, já que, perdoem o truísmo, sem abundância de leitores não há grande circulação de jornais, por mais que o jornal sue e se esbofe.
A educação obrigatória do povo era, a um só tempo, interesse das sociedades competitivas, que precisavam de trabalhadores cada vez mais capazes nas tarefas novas, como, ainda, na nascente imprensa.
É claro que o fantástico progresso europeu da época veio da alfabetização do povo em geral, alfabetização da qual o Brasil foge até hoje como o diabo da cruz. Aqui entre nós, o Brasil ainda morre de medo diante de algum método de alfabetização instantânea que algum sábio irresponsável invente no Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
Mesmo nos velhos tempos folhetinescos, bastava uma pessoa que soubesse ler para todos acompanharem as aventuras de "Sinclair das Ilhas": os demais ouviam. Esse velho modelo, da leitura em voz alta, resultou entre nós na televisão.
Como a nossa TV, e suas novelas, a leitura continua sendo praticamente o luxo da classe fina que sempre foi. Aliás, o próprio jornal ficou, digamos de passagem, um tanto inútil entre nós.
A TV não exige preparo nenhum. E mantém, sob uma forma muito mais agradável e moderna, o regime que sempre foi o nosso e que não cessamos de relembrar: a escravidão.
Desculpe o tom. A culpa é do livro de Marlyse, que contém algo de inebriante e revolucionário. Em grande parte, o folhetim, nos diz ela, é fruto daquela concepção popular da arte que diz que "desgraça pouca é bobagem". E que os grandes criadores de desgraças, como Ponson du Terrail, podem aparecer, como seu Rocambole, disfarçados, por exemplo, no Luís Napoleão Bonaparte do "18 Brumário", de Karl Marx.
Aliás, além de modelo e mesmo espelho da história levada a sério, o folhetim não fará também parte da própria música? Com seu cândido jeitão socrático de quem faz perguntas aparentemente ingênuas, só para nos calar a boca em seguida com a resposta certeira, Marlyse pergunta por que será que na Itália não cresceu o folhetim nativo, como na França e mesmo na Espanha?
E responde, apoiada em Gramsci: é que na Itália floresceu a ópera. Haverá folhetim melhor do que o "Rigoletto", "Tosca", "O Trovador"?
"Folhetim" devia ser publicado em folhetins, para ser absorvido aos poucos e encadernado depois, como fazem agora os jornais com dicionários e enciclopédias colecionados pelos filhos de gente que mora bem e tem conta no banco.

Texto Anterior: Jornalista bate papo com leitor da Folha
Próximo Texto: Ballet Kirov quer manter a tradição intocada
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.