São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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Crise do campo atormenta Brasil urbano

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

No início da década de 50, o Brasil não fabricava automóveis, inaugurava sua primeira estação de TV e tinha cerca de 70% de seus habitantes na zona rural. Quatro décadas depois, em uma única geração, o país do café e do Jeca Tatu possui uma respeitável base industrial e concentra 70% de sua população em áreas urbanas.
A vertiginosa mudança não acabou com o problema: o campo brasileiro continua produzindo sangue e assistindo, como no passado, ao desfile de bandeiras vermelhas entre multidões de miseráveis, agora sob comando do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Combater o latifúndio, desapropriar, ocupar, distribuir -as palavras de ordem resistem ao tempo, como resiste a concentração fundiária: 0,9% dos proprietários detêm mais de 35% das terras.
Assentar ou taxar?
Mas, afinal, que reforma agrária poderia, hoje, no mundo da globalização, sob o signo da Terceira Revolução Industrial, redimir o país de sua incrível capacidade de evitar que seus ponteiros se acertem com os da história?
O consenso está longe de existir:
"A idéia dos assentamentos como é realizada agora é precária, é como dar um carro a quem nunca dirigiu", critica Antonio de Salvo, presidente da Confederação Nacional da Agricultura.
"O básico é a distribuição de terras. Se ela for em grande escala, gera-se pressão por outros instrumentos", rebate José Eli da Veiga, economista e professor da Universidade de São Paulo (USP).
A principal contrapartida à proposta distributiva alardeada pelo MST tem sido a da reforma pela via fiscal. É o que defendem representantes do pensamento liberal, como o economista Roberto Campos, um dos pais do Estatuto da Terra, criado há 30 anos.
A idéia é tornar inviável a posse especulativa tributando fortemente a terra improdutiva. O tributo seria progressivo, de acordo com a situação das diversas regiões, uma vez que, como diz Campos, "o que é latifúndio no sul é minifúndio no norte".
Segundo essa visão, a desapropriação só seria utilizada em situações extremadas em áreas pertencentes a Estados e União.
Quadro variado e complexo
É difícil, entretanto, discutir medidas sem que antes se tenha um diagnóstico mínimo da situação.
E aqui, apesar da situação caótica dos registros e da relativa escassez de dados estatísticos, tudo aponta para um quadro variado e complexo, que dificilmente poderia encontrar soluções em um único mecanismo universal.
Essa opinião é desenvolvida por um especialista no assunto, Francisco Graziano Neto, ex-presidente do Incra, cujo afastamento do governo, por conta do nebuloso episódio das conversas telefônicas em Brasília, não anula seus conhecimentos sobre a situação agrária.
Num estudo que, ainda este ano, deve transformar-se em livro, Graziano procura demonstrar que o campo brasileiro não ficou parado e imune ao processo de modernização das últimas décadas -ainda que tenha preservado situações arcaicas e que a modernização não tenha necessariamente significado justiça social.
O campo mudou
Em poucas palavras, sua tese é que o latifúndio e as oligarquias tradicionais deixaram de se localizar no centro da questão agrária do país, cujo motor dinâmico passou a ser a empresa agrícola profissionalizada, mecanizada, com base em trabalho assalariado.
"Se nossa agricultura não tivesse também se modernizado, junto com a industrialização, não existiriam as grandes cidades, muito menos as periferias delas, porque não haveria alimento para essas populações. Se existe fome nessas regiões, ela é devida à má distribuição de renda e não às deficiências da oferta de alimentos", observa.
"Até certo ponto, isso é verdade, houve uma industrialização do campo. A terra hoje responde por apenas 20% do custo da produção agrária", diz Roberto Campos.
Não foram o latifúndio e as oligarquias os responsáveis, como sugere o simples fato de que 80% da produção agropecuária sai do centro-sul, onde as estruturas arcaicas e improdutivas perderam espaço para empresas modernas.
Não que o latifúndio tenha sido banido do país. Ele existe, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, mantendo relações pré-capitalistas, sob controle das oligarquias locais ou sob a forma de reserva de valor para empresários do Centro-Sul.
Esses grandes contrastes regionais -e os que se verificam no interior de cada região- são responsáveis por demandas diversas e pedem soluções diferenciadas.
Função social
Nas áreas marcadas por grandes extensões improdutivas, a reivindicação distributiva teria lugar, especialmente quando se pensa em sua função social, de amenizar o drama de famílias sem propriedades que não encontram emprego.
Aqui, como diz o sociólogo Ricardo Abramovay, da Universidade de São Paulo, a reforma agrária deve ser "um meio de garantir cidadania a essas pessoas e segurá-las no campo, onde as chances de que tenham ocupação é maior do que na cidade".
"A reforma é fundamental para barrar o êxodo rural. Foram 28 milhões que deixaram o campo em apenas 20 anos", concorda Luiz Carlos Guedes Pinto, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária.
Reivindicação trabalhista
Já no campo modernizado, o capitalismo tende, evidentemente, a substituir a demanda por lotes familiares pela agenda propriamente trabalhista, ligada a salários, proteção previdenciária, boas condições de transporte etc.
Nessas regiões, o distributivismo deixaria de ser relevante estruturalmente, passando a acessório para casos localizados, como o Pontal do Paranapanema, por exemplo, em São Paulo.
Aqui, como diz Abramovay, "faz sentido assentar de maneira tópica".
Desconsiderar as diferenças e querer adotar a política distributiva como panacéia para todo o campo seria, para Graziano, conceber um quadro rural bizarro, formado unicamente por proprietários, do qual "o assalariamento estaria banido".
Recusá-la in totum, por outro lado, seria correr o risco de fechar os olhos para a dimensão social que a repartição da terra pode ter.
Se há virtudes nos assentamentos, elas são exatamente as de fixar minimamente famílias no campo e conferir um rendimento básico para os anteriormente desempregados (leia à pág. 1-10).
Nas reportagens que se seguem, a Folha traz algumas propostas, sugestões e casos concretos que podem auxiliar o equacionamento da questão agrária no país.

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