São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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Os ladrões da caixa d'água

ROBERTO CAMPOS

Há poucos dias, numa carta a um jornal, um leitor formulava de maneira simples e objetiva o problema principal do governo neste momento: quanto é preciso para encher uma caixa d'água cheia de ladrões e com as torneiras abertas? A mais séria das dificuldades do Estado brasileiro é precisamente isso: pelo desperdício, pela lambança, pela corrupção demagógica, pela falta de prioridades e de critérios chegamos a uma criminosa ineficiência geral nos gastos públicos.
Não é preciso explicar isso a Fernando Henrique. Em matéria de lucidez, não há o que se lhe possa acrescentar. Mas com uma economia muito apertada, e com limitada capacidade de manobra política, ele está sendo atropelado, em nome de demandas sociais, por grupos radicais ou populistas a que ele próprio desavisadamente ofereceu espaço. E tem respondido apenas reativamente às provocações, como o reflexo do joelho quando o médico bate com o martelinho de borracha.
Parece endossar a "angelização", pela mídia, dos "guerrilheiros" do Araguaia, como se fossem escoteiros fazendo piquenique com balas de festim. Atiravam para matar. Planejavam nada menos do que criar uma republiqueta comunista, segundo a técnica do "foquismo" de Che Guevara, isto é, a multiplicação de focos de insurreição. E, se fossem vitoriosos, haveria milhares de "burgueses" desaparecidos e alguns "gulags". E ninguém ousaria falar em indenizações, direitos humanos e outras esquisitices da moral burguesa...
É tempo de o presidente deixar de ser bonzinho e pôr ordem na casa. Os funcionários públicos que invadiram o Ministério da Fazenda, assim como os eletricitários chantagistas, que ocupam subestações e nos ameaçam de "black out", devem ser sumariamente demitidos. A demissão por justa causa é bom remédio para a inconcebível libertinagem das greves de serviços essenciais do setor público, que pesam exatamente sobre os mais indefesos. A privatização dos monopólios é ainda melhor remédio, sendo por isso lamentável a promessa presidencial de não privatizar a Petrossauro.
Fernando Henrique não vai ganhar palmas da oposição de esquerda e vizinhanças. Todas as oposições, em todo o mundo, pretendem substituir os governos -tirar quem está lá em cima para sentar no lugar. É do jogo do poder. Nos países de mais alto nível de cultura política, a disputa se concentra hoje muito mais na "gerência" do que no poder. Os participantes concorrem num mercado político competitivo, oferecendo os seus produtos aos "consumidores" -opinião pública e eleitorado-, propondo não grandes opções ideológicas, mas um melhor balanço de custos e benefícios. O que resta de demagogia radical se concentra nas franjas fundamentalistas étnicas e nacionalistas.
Nos politicamente menos desenvolvidos, a disputa do poder tende a virar intransitiva e irracional, com a mobilização de rancores pelas esquerdas e/ou pelo radicalismo étnico e religioso.
No caso brasileiro, a única real esperança que o PT, e essa excrescência caudilhesca que é o PDT, podem alimentar de retornar ao centro do palco (onde pensam estar em 98) é a de que a economia entre em parafuso, numa crise total de governabilidade. Se o governo levar adiante as reformas, a equação política do país vai ser outra. E, ainda que a coligação governamental venha a perder popularidade, não existirá espaço para uma verdadeira recuperação das atuais esquerdas. Admitir que as reformas sejam levadas a cabo com êxito seria, para os nossos dogmáticos, aceitar a viabilidade prática do "neoliberalismo", coisa assustadora para os "neoconservadores".
As oposições não têm alternativas para propor, mas sabem atrapalhar. A demora das reformas revela como nossa estrutura partidária é frágil, obrigando os governos a comporem bases parlamentares precárias, a um custo exorbitante, e complicando as decisões sobre temas em que haja alguma controvérsia. O permanente risco eleitoral empurra muitos muitos congressistas para o imediatismo e para iniciativas retóricas ou demagógicas. Todas as democracias, aliás, encontram hoje dificuldades para resistir à ação dos mais organizados ou mais estridentes. E os temas sociais são aqueles em que os demagogos, os ressentidos e as esquerdas organizadas mais "faturam". Hipocritamente, aliás, porque nossas esquerdas não gostam dos pobres. Gostam mesmo é dos funcionários públicos. São esses que, gozando de estabilidade, fazem greves, votam no Lula, pagam contribuição para a CUT. Os pobres não fazem nada disso. São uns chatos...
Nossa realidade são imensas carências (embora não tantas quanto fazem parecer o vício pessimista e sensacionalista da imprensa, e a deliberada deformação ideológica dos descontentes). O crescimento econômico do país, travado temporariamente pelas crises mundiais de 80 a 82, culminando com o desastre da insolvência do México, nunca mais se recuperou. Foi uma década e meia de crises sucessivas, em que o PIB cresceu em média apenas 1,8% ao ano, permanecendo estagnado per capita. E sobre essa base estreitada, desabou o peso do dilúvio demográfico, que desde 1950 adicionou 100 milhões de novos habitantes, entupindo as cidades com gente pouco qualificada para as demandas de uma economia industrial em rápida evolução. O Brasil não parou de progredir socialmente, mas os problemas correram à frente. É bom lembrar que carências existem até nos homogêneos pequenos países nórdicos e que, nas sociedades "desenvolvidas", há 5 a 15% que ficam de fora. São os perdedores do sistema -a "subclasse", no sentido de Dahrendorf, para os quais não se encontraram ainda soluções satisfatórias.
No Brasil, há dois problemas básicos: os números excessivamente altos da pobreza absoluta, que nada justifica chegue a 16 milhões de pessoas; e a absurda ineficiência e lambança do Estado no uso social dos limitados recursos. Em relação ao PIB, já temos a mesma proporção de gastos públicos e sociais que países como os Estados Unidos e o Japão. Explorar essa situação para forçar o governo contra a parede tem sido fácil. Tanto mais quanto não temos o hábito de exigir decência ou responsabilidade dos críticos, e gostamos de um exagero. Mas a verdade é que Fernando Henrique compreendeu corretamente a hierarquia desses problemas. Para que o caminhão da economia possa transportar a carga social, é preciso antes de mais nada que funcione. Estou à vontade para falar, porque, com Castello Branco, tivemos de seguir essa ordem: recuperar a economia e a funcionalidade do Estado, para então poder agir na parte social -o que foi feito através, por exemplo, do programa habitacional e do Estatuto da Terra.
Há, porém, um reparo a fazer ao atual governo. Capricha muito no discurso, mas tem sido fraco na gerência. Otimizar a gestão dos recursos é crucial: hoje, o mau uso destes é pior do que a falta. E muito mais difícil de tratar. Desde 1985, somos minados por uma doença paralisante de todos os órgãos de ação. A demagogia delirante levou à constitucionalização e à judicialização de tudo. Qualquer ato de autoridade na aplicação de uma lei, ou na execução de um programa, pode ver-se subitamente contestado por liminares das instâncias mais baixas. Estas, não estando vinculadas pelas decisões dos tribunais superiores, fazem o que bem entendem, dando um enorme trabalho para se consertar mais em cima. Naturalmente, o fato de que o Judiciário se tornou o "tapetão" em que os jogos acabem tendo de ser decididos não é culpa deste, mas do baixo nível técnico e da predominância da demagogia e dos interesses especiais que vem caracterizando nosso processo político. Serão necessárias mudanças constitucionais e infraconstitucionalidade mais amplas do que as da limitada reforma administrativa proposta.

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