São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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A rigidez do gênero histórico

JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como disse Borges, todo gênero literário vive da contínua e delicada infração de suas leis. O romance histórico, à falta de outras musas que lhe acudam, pode ser puramente histórico. Pode prescindir da análise psicológica, de caracteres fictícios e iluminar o destino de vidas já traçadas.
Mas, se quiser apetecer a paladares ávidos de periodismo, terá de instaurar um claro vínculo com o presente. Pelo menos desse atributo compartem dois lançamentos recentes, "Rasero" e "Bomarzo". As semelhanças, contudo, param por aí.
"Rasero", de Francisco Rebolledo, foi agraciado com o prêmio Pégaso de 1994. Conta as peripécias do herói que dá nome ao título, funcionário da coroa espanhola na corte de Luís 15.
Amigo íntimo de todas as sumidades intelectuais da época, Rasero é uma espécie de Casanova ilustrado, a quem os céus dotaram de assombroso poder: vislumbrar, em seus orgasmos, imagens fugazes do futuro. Um futuro aterrador, que dali a 200 anos se tornaria realidade e ao qual se unirá o protagonista, cujo livro de cabeceira, previsivelmente, é o "Apocalipse de São João".
Manejando um procedimento inspirado na "Morte de Artemio Cruz", de Carlos Fuentes, sua encarnação futura trata Rasero por "tu" e, ao final, deduz pateticamente: "É curioso, nasceste no século da Ilustração e morreste no do Progresso, mas teus orgasmos levaram-te ao século do Horror". Inútil dizer que o autor nutre veleidades filosóficas e padece de um incorrigível afã de baratear sentimentos humanos.
Cito esse, que tem o mérito de ser breve: "A gente humilde é nobre. Às vezes creio que é muito mais nobre do que aqueles que supostamente o são".
O livro demora-se com imenso deleite na descrição dos prodígios sexuais do herói, cuja feiúra insiste em promover um desabusado furor uterino nas mulheres que avista. Quando encontra o amor de sua vida, uma bela viúva que aportara do Novo Mundo, o leitor descobre, com algum fastio, que o ímpeto do conquistador não é mais o mesmo. Três laboriosos meses o separam da consumação do ato. (O amor é casto...)
"Rasero" não passa de uma redundância face a outra figura marginal da história, Victor Hugues, imaginado por Alejo Carpentier. Ler (ou reler) "O Século das Luzes" talvez valha mais do que enfrentar as 500 páginas nem sempre imprevisíveis desse romance.
No mesmo ano da afamada obra de Carpentier (1962) é publicado "Bomarzo", do argentino Manuel Mujica Lainez. O livro narra as desventuras do duque de Bomarzo, membro do clã gibelino dos Orsini no século 16 italiano, a quem uma desapiedada corcunda pesa torpe e moralmente sobre as costas.
Mujica Lainez não é um inovador. Proust, de quem se nota grande influxo, fornece-lhe o apuro descritivo do relato. Seus personagens são convincentes, seu humor é civilizado, sua ironia é ágil ao infiltrar-se pelas brechas da narrativa, e sua prosa é idônea, embora vença a batalha com o idioma por pontos, à força de recriar um fraseado vertiginoso.
Há no escritor portenho um misto de cumplicidade e distanciamento frente à sociedade decadente. Seu intuito não é recobrar o passado, mas livrar-se dele, conjurá-lo. (O declínio de uma estirpe que culmina na vitória de Lepanto não deixa de ser correlato, salvo engano, à queda de Perón em 1955.)
Ricardo Piglia, em seu "Respiração Artificial", põe nos lábios de Emílio Renzi a opinião de que Mujica Lainez é uma mistura trôpega de Hugo Wast e Enrique Larreta (autor de "A Glória de Dom Ramiro", 1908), obra que guarda afinidades com "Bomarzo".
Em parte, de fato, seu livro tem algo de best seller refinado. Mas o autor merece atenção, quando mais não seja para instigar a edição de outros clássicos latino-americanos, como talvez Horacio Quiroga, Roberto Arlt e os romances de Juan Carlos Onetti.

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