São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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Emblemas de um passado próximo

MARCELO REZENDE
DA REDAÇÃO

A escritora Alison Lurie, nos mostra "Vidas Reais", é uma prisioneira. O romance, originalmente escrito no início dos anos 70, serve como epítome de seu mundo ficcional. Ou, ainda, do universo onde se encontra -positivamente, acreditam alguns setores da crítica de seu país- irremediavelmente capturada.
Estamos então no território da classe média intelectual, das calças de veludo, dos coquetéis e das infidelidades passageiras, sofridas e doentias.
É nessa espécie de triste paisagem que se move Janet, uma dona de casa que se notabiliza por ser mulher de Clark (ter um marido, ao menos há duas décadas, era um fator de diferenciação) e manter uma paixão irresistível pela literatura.
Quando o livro se inicia Janet está avisando Clark de sua partida para Ilíria, um pequena pensão que recebe apenas artistas em seus quartos. Sua fauna é composta de músicos, pintores e vários escritores como ela, que passam seus dias divididos entre um cotidiano de puro relaxamento e as atividades de criação.
Janet parte motivada por um certo cansaço das pessoas, dos parentes que a obrigam se justificar por cada conto escrito, cada palavra pensada. Sua idéia, ainda que Alison Lurie nos roube essa clareza, é a de que sua felicidade só poderá se realizar entre seus iguais: os verdadeiros artistas.
Mas os talentosos de "Vidas Reais" terminam, ao longo da história, demonstrando suas vilanias e baixezas, acentuadas pela chegada de Anna May, uma garota mais jovem, filha de uma das donas do local. A beleza quase adolescente fará com que todos na pequena comunidade se transformem.
Haverá inveja e competição onde antes residia a harmonia. Disfunção no lugar da ordem.
Em meio a todo caos, Janet termina por se entregar -sexualmente- ao mais selvagem, ao menos para seus olhos, dos artistas do local.
Com a experiência descobre que a literatura não é feita apenas dos acontecimentos de sua mediana vida de dona-de-casa americana. É repleta também da sordidez. A partir desse novo dado ela pretende construir seus novos escritos e, por fim, seu cotidiano.
Alison Lurie surgiu nas letras americanas como uma resposta feminina aos machos brancos (Norman Mailer ou Willian Styron) que dominavam a cena. Seu tempo é o dos relatórios Hite e das manifestações em favor da igualdade entre os sexos. E sua obra se ressente disso.
"Vidas Reais", visto hoje, parece pertencer mais ao reino da curiosidade do que ao do talento. Lurie foi ultrapassada pelas gerações posteriores, marcadas pela experimentação ou pelo "novo realismo" de Raymond Carver.
Sua literatura parece ter sido derrotada pelo tempo. Não há em seus romances a urgência de uma escritora como Joyce Carol Oates, que serve de exemplo por ser uma de suas companheiras de geração. Uma das que venceram a terrível fatalidade de uma literatura circunstancial.
Mas permanece em Lurie a observação aguçada de um momento em que os adultos se viam perplexos diante de suas novas potencialidades e liberdades. Quando o passado tão próximo já não fazia sentido algum.
Cumprindo o estranho papel de relatório de uma década, "Vidas Reais" serve a todo aquele que se pretende um antropólogo amador, desejoso em descobrir as raízes do modo que se vive hoje.

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