São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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Mergulho em fendas imemoriais

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Biscoito fino, lágrima e chimarrão. Dessa mistura nasceu "Assim na Terra", do gaúcho Luiz Sérgio Metz, 43, romance que é mais um longo poema em prosa, na realidade -de poética madura, tecida no interior do corpo entre ponchos e pelegos invernais.
Na divisão que virou moda fazer entre literatura de entretenimento e alta literatura, ou coisa que o valha, o livro de Metz se encaixa sem nenhuma dúvida no segundo grupo. Isso já é um aviso aos navegantes.
Em busca de suas origens, de um começo que é ao mesmo tempo o seu fim, um homem adentra estradas sem nome, remói paisagens ancestrais ativadas por odores do pampa, faros tremeluzentes, cerimoniais de beira de caminho, pelo tato que se aprimora em matas escuras. Delira, raciocina, elabora, sem destino definido, pelos desvios da memória e da linguagem.
No percurso, encontra Gomercindo, mais velho, que o conduz a um galpão que chama de Pensário, espécie de caverna platônica, cheia de sombras, de arquitetura rigorosa, janelas e portas implantadas a partir de uma simetria que remonta a uma quase-perfeição filosófica, de atmosfera surreal.
Convivem ali por um tempo impreciso, à luz de uma vela, em torno de uma escrivaninha de gavetas vazias, à sombra de um luar permanente. Gomercindo é uma espécie de guia mefistotélico, expõe-se enigmaticamente, para que o jovem decifre sua experiência e a recrie, na caminhada que os dois perfazem a seguir, com alguma essência cuja clareza Metz está longe de nos indicar. Um pacto tácito vigora entre os dois, até o final de sua andança, já a cavalo, ambos com os olhos vendados em comum acordo.
Entre delírios, sonhos e reflexões mais ou menos coerentes, usando um fraseado extremamente controlado no ritmo e na sonoridade -cada frase é a linha de um poema-, Metz constrói em seu romance de estréia um monumento à palavra ("A palavra é a nossa única saída, água de quase tudo, do cisne ao álibi", diz o narrador).
Leia este trecho, entre centenas de outros que poderiam ser extraídos do livro: "O passar está nas campânulas, em cada caco pisado, no que balança uma lamparina no vento da varanda. Na entrada de uma ponte curva, na medula do tropel, no esvaziado retumbo de um petrecho que se solta do volume e senta e dorme a sua cabeça repentina". "A saudade está nos músculos das coxas", ensina o narrador/autor com seu "grito gaudério".
Metz faz surgirem em seu texto nomes de poetas como Baudelaire, Valéry, Wordsworth, e principalmente Eliot e Mallarmé. Mas esses nomes não aparecem artificialmente. Ao contrário, encaixam-se à perfeição na carga poética, na densidade linguística do romance, como se fossem substantivos comuns: flechilhas, relincho, tambeiras, mochinhos, balim. Ganham uma dimensão telúrica, infestada de elementos da realidade visível, quase como se não fossem poetas, mas sim genes de raciocínios.
Em outras palavras, Metz transforma o seu apego à literatura e à filosofia em instrumento de mergulho ficcional, mergulho em fendas imemoriais, mais ou menos abstratas, coletivas e individuais. Sua grande força está no carinho que devota ao texto, aquecendo-o com o fogo da tradição sulina.
Em muitos momentos, o autor atinge uma fusão entre a efervescência poética de "Lavoura Arcaica", de Raduan Nassar, e o peso das boas histórias dos "Contos Gauchescos", de J. S. Lopes Neto. Quem vir exagero na afirmação, que leia antes o livro de Metz.
"O início é pelo desfeito. Uma obra nasce, anoitece, some sem registro. Não há como dela se inteirar", afirma o velho Gomercindo. Ignorar "Assim na Terra", no entanto, neste espaço, seria crime de lesa-literatura.

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