São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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A lógica do romance de deformação

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O austríaco Robert Menasse, um dos escritores mais elogiados da atualidade, na Europa, tem fortes elos com o Brasil. Desembarcou por aqui em 1981, com um contrato na USP de dois anos, mas acabou ficando sete. Na época, era professor recém-formado, acalentando um projeto de pesquisa sobre Hegel.
A experiência brasileira, porém, transformou o filósofo em romancista. "A Certeza Sensível", título do primeiro capítulo da "Fenomenologia do Espírito", de Hegel, deu nome ao volume de estréia de Menasse na ficção, que o colocaria em evidência no cenário europeu.
Seguiu-se "Tempos Saudosos, Mundo aos Pedaços" (expressões extraídas da teoria do romance de Lukács), cuja edição de bolso, lançada pela Suhrkamp, vendeu cerca de 40 mil exemplares. O último volume da trilogia, "Schubumkehr" (cuja tradução literal seria "Reversão do Empuxo"), já publicado em capa dura, promete carreira semelhante com a edição de bolso a aparecer em breve.
Com uma longa lista de prêmios na bagagem, Menasse está agora de volta ao Brasil numa visita sentimental -mas que já lhe valeu a promessa de publicação da trilogia pela Companhia das Letras.
Os lançamentos começarão por "Tempos Saudosos", seguindo-se "Schubumkehr". "A Certeza Sensível", discretamente publicado em português pela Estação Liberdade, há cerca de cinco anos, será relançado em nova versão, fechando a trilogia.
Em entrevista à Folha, Menasse explicou suas relações com o Brasil e suas opções literárias.
*
Folha - Como seu projeto filosófico sobre Hegel se transformou em romance?
Robert Menasse - A teoria de Hegel do desenvolvimento da história sempre me fascinou. Mas o que realmente me faltava para escrever romances era a experiência que tive aqui. Foi em São Paulo que aprendi o que é pós-modernismo, numa época em que ainda não se falava disso. Aqui existia a pós-modernidade e existia também a resposta para ela. O milagre dessa cidade enorme, que não poderia funcionar, mas funciona, a coexistência de elementos antagônicos: foi a vivência disso que me possibilitou escrever romances. Na Europa, muita gente adotou os conceitos de pós-modernidade, acreditando serem ornamentos para a vida, mas não os entende da maneira existencial que conheci aqui. E aprendi também a escrever em vários níveis ao mesmo tempo. "Tempos Saudosos" é um romance policial, uma história romântica, um conto de filosofia e um conto histórico. Tudo acontece ao mesmo tempo, tudo tem que funcionar junto, como São Paulo.
Folha - Nesse livro, há o personagem de Leo Singer, que quer colocar o Idealismo de Hegel na prática. Isso seria uma expectativa que você mesmo tinha e que São Paulo desfez?
Menasse - Toda pessoa fraca gostaria de ter uma técnica para dominar o mundo. Eu também. Sempre achei que deveria haver técnicas de pensamento que possibilitassem realmente uma ação. Mas a gente tem que se livrar disso. Leo Singer é uma espécie de Dom Quixote. Quixote leu os romances de cavalaria e achou que poderia sair e fazer igual. Singer leu Hegel e Marx, depois saiu com essas armas para entender e melhorar o mundo. Mas o mundo não quer ser melhorado nem entendido imediatamente. Singer consegue apenas cultuar uma vida particular ridícula e trágica.
Folha - Em "A Certeza Sensível" você lança um conceito curioso de "Rueckentwicklungsroman", ou seja, "romance de deformação". Seus romances mostram, realmente, uma regressão. O aprendizado, em vez de levar a um progresso, implica uma volta que, em "Schubumkehr", reduz o personagem a um edipianismo infantil.
Menasse - Os antigos romances seguiam o esquema do jovem que vive uma série de experiências e então está pronto para se adaptar à vida social. Hoje em dia, as coisas funcionam de maneira inversa -pelo menos na Europa. O jovem, depois de uma excelente formação, se acha um gênio e tem grandes esperanças. Mas daí sai levando golpes em sua genialidade e só então, depois de completamente tonto, é que consegue funcionar na sociedade. Os gênios não funcionam. A tecnologia também levou o homem a uma regressão. O próprio processo da escrita prova isso: o computador, um instrumento da escrita, é ao mesmo tempo um brinquedo. Também em outros níveis, tudo se transforma em diversão, o que torna as pessoas cada vez mais infantis.
Folha - O personagem Roman (cujo nome significa também "romance"), que aparece na trilogia, ao regredir dessa maneira está também desfazendo a estrutura do romance, tal como se formou na modernidade?
Menasse - Os três romances tinham de fato esse programa. Do ápice da arte de narrar, do romance do século 19 (em "A Certeza Sensível" e "Tempos Saudosos"), chego a "Schubumkehr", que mostra não apenas a implosão das figuras principais, mas também o esfacelamento do próprio romance. Tomo a idéia de reflexividade da teoria do romance de Lukács: no primeiro romance, apresento um espelho; no segundo, o espelho cai; no terceiro, vemos apenas os pedaços desse espelho.
Folha - Isso não é um programa exatamente novo. Já existia no "nouveau roman" francês ou no movimento austríaco da "nova subjetividade", com Peter Handke e outros.
Menasse - Mas o "nouveau roman" não tem vida nem mundo, apenas um mundo reificado. Nos meus romances, existem a vida e o mundo. A "nova subjetividade", da década de 70, era radicalmente subjetiva. Já a idéia obsessiva dos meus personagens é o casamento do mundo subjetivo com o objetivo. Esse casamento seria algo milagroso, uma possibilidade mítica, que considero o aspecto especial desses romances.

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