São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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"Rei Lear" sob medida para leigos

RICARDO SEMLER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eis pois a questão. Que Paulo Autran e Ulysses Cruz labutam para responder. "Rei Lear" é considerado por muitos teatrólogos -e psiquiatras- a maior peça de todas, e talvez contenha o personagem mais difícil de interpretar. Apesar de narrar a queda de um herói, Shakespeare cessa aí a similaridade com outros seus heróis, como Othello ou Macbeth. Este aqui passa por Dante, saindo da vida diretamente para o purgatório.
A história não é de Shakespeare -aliás, poucas dele são originais em termos de enredo. Isto já autorizaria o encenador de qualquer de suas peças a fazer o que quisesse com o texto. Como não existem direitos autorais, nada impede que alguém goste de uma historinha dele e a coloque no palco.
Jean-Luc Godard fez isto com o seu Lear, uma bobagem insípida que tinha até Woody Allen no elenco. O mago Peter Brook dirigiu o seu tedioso Lear num cenário tão tenebroso da Dinamarca que o espectador saía do cinema direto para uma sessão de terapia. Kurosawa fez da sua versão um glorioso martírio para o cinéfilo ocidental.
Qual o problema, então, em fazer os soldados do rei exercitarem tai-chi-chuan, deixar que chamem o Lear de titio, e este se referir aos seus súditos por companheiro? No "Coriolanus" do National Theatre não era o vilão um gângster dos anos 60?
Estreou na semana passada em Londres o "Ricardo 3º" de Ian McGlennan. Descontadas as presenças constrangedoras dos péssimos Annette Benning e Robert Downing Jr., o filme é monumental em termos de cenário e montagem. A história do Ricardão fascistóide foi trasladada para os anos 30, seu cunhado lê o "Wall Street Journal", e usam-se metralhadoras em vez de espadas. Sentado em seu jipinho, o rei oferece o seu reino por um cavalo. Ora, pois.
Ocorre que a historinha, em Shakespeare, nunca foi muito mais do que uma pista de decolagem para seus vôos. Por isso não fazia muita questão de ser original, nisto. O seu patrimônio era o arcabouço insuperável de personagens e características humanas. Não há como inventar hoje um tipo, um caráter, uma personalidade, que não possam ser encontrados nos textos dele. Esgotou-se a matéria.
Isto se alia a um comando das palavras sem qualquer concorrente à vista. Quem fala inglês fluentemente e gosta de teatro perde 20% quando assiste a uma peça sua, na versão clássica. Quem apenas fala inglês de nascença, coitado, perde um terço. Traduzindo, há que se fazer um desconto a mais. Levando em conta os 300 anos que se passaram, há ainda mais por perder por conta dos inuendos históricos inerentes ao texto.
Encenar Shakespeare no Brasil, portanto, talvez requeira popularização. Claro que isto significa passar tudo no liquidificador, e um textinho de terceira como o "Péricles", de co-autoria de Shakespeare, fica equiparado ao Lear, que é considerado, como diria o ex-ministro Magri, "inincenável". É como se fosse uma franquia, uma Milk ShakesPeare & Company, em que cada um pinta e borda. Sem um departamento de controle de qualidade.
Se existisse uma Fundação Shakespeare, que aprovasse ou vetasse produções, o "Péricles" de Ulysses Cruz seria exportado como modelo de espetáculo, e o seu Lear seria vetado inapelavelmente. Exceto como veículo didático. Eis a questiúncula.
Dezenas de livros, centenas de teses, milhares de artigos têm se ocupado de compreender cada inflexão, cada insinuação de Lear. Tem-se discutido até a exaustão as diferenças entre a versão in-fólio ou in-quarto, das transcrições e versões de palco. Atores têm se preparado durante anos a fio, diretores têm se levado ao limiar da obsessão, compositores como Balarikev e Berlioz têm se dedicado ao tema. E cada frase, cada palavra instrumental tem sido revirada. Desde considerar o sub-roteiro de Gloucester e filhos redundante, até uma versão na qual Cordélia era estuprada por Edmund, e por aí afora.
Neste sentido, esta montagem é uma versão melhorada do que se esperaria de um trabalho de formatura da escola de teatro de Yale, já que irreleva todas as questões transcendentais desta obra.
Mas a estatura de Autran e o especial talento de Ulysses Cruz desmentem uma simplificação destas. Não são tolos ou amadores. Claro que não são Peter Brook e Olivier, estão mais pra Kenneth Brannagh e Alec Guiness. Este último, aliás, é dos bons exemplos de atores tidos como mito, que se esborracharam ao se deparar com o velho rei.
Paulo Autran, que depois de seus grandes momentos de TBC carrega a aura de mito, não vai vê-la se dissipar por causa deste seu Lear, mas pode estar vivendo um certo anticlímax. Como deve ter vivido Sir John Gielgud na produção modernista de Isami Noguchi.
Autran se recusa à entrega ao papel, este que deixava Olivier e Albert Finney estatelados no chão da coxia por 30 minutos, para recuperar a energia. Por isso, não é possível nem sequer discernir a qualidade de seu desempenho. Mas também não vira um apenas um Rei Autran ou Rei Péricles, apesar da transferência exagerada da fórmula encenada no Sesi -tochas pelo público, tambores em cima de uma casamata, figurinos em pastel, muita correria, muitos atores principiantes e bandeiras coloridas.
Há público para um denso e clássico Shakespeare no Brasil? Duvido. Mas o desconto é de 80% quando se encena Shakespeare de forma popular? É. Mas o público aplaude, e, principalmente, entende. Tradução ruinzinha, texto truncado? Claro que sim. Mas fosse comparar o cirquinho do desfile Phytoervas com o prêt-a-porter em Paris ou a nossa Bienalzinha com as grandes exposições de Londres, teria a imprensa toda que cair gargalhando em suas críticas. Não é o que acontece.
"Rei Lear" foi talvez a peça que inaugurou a era do teatro do absurdo, como a sua última cena sugere. Beckett bebeu desta água, Pirandello também. Assim, nada impede que se faça uma simplificação absurda deste grande clássico. Uma versão anos 90, em que Lear fosse um empresário e dividisse suas indústrias Learjet entre três filhas certamente renderia 160 capítulos na Globo, e todos diriam que foi uma adaptação genial.
Cruz e Autran fizeram o "Lear" para leigos -isto é inaceitável para qualquer amante de Shakespeare, mas serve bem a gosto médio- e o que há neste planeta que seja mais médio do que o Brasil? Arriba a mediunidade!

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