São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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A multiplicação da subjetividade

SUELY ROLNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os avanços da tecnologia, principalmente na mídia eletrônica e na informática, bem como a globalização da economia, criam práticas que implicam uma pluralidade de ambientes, aproximando uma imensa diversidade de corpos, não só humanos.
O encontro das subjetividades com esta variedade tem por efeito povoá-las de uma miscelânea de forças de toda espécie, vindas de toda parte do planeta. Multiplicam-se as cartografias das relações de força e, portanto, os estados que se engendram nas subjetividades. Com isso, suas figuras pulverizam-se facilmente, abalando a crença na estabilidade.
A mestiçagem desta profusão de forças nos leva a supor o fim da figura moderna da subjetividade, que se constrói em torno de uma referência identitária. Estaríamos ingressando num mundo em que a criação individual e coletiva se encontra em alta, pois muitos são os estados de corpo que pedem novas figuras, muitos são os recursos para criá-las e os mundos possíveis. Por exemplo, as infovias: a impressão de estarmos participando de uma comunidade humana que produz e compartilha seus conhecimentos e decisões à viva voz.
Cada participante desta imensa polifonia eletrônica pode virtualmente deixar de ser uma entidade individualizável pré-fabricada, segundo o lugar de sua inserção em alguma órbita do mercado, sem por isso virar um nada. Cria-se a oportunidade de cada um produzir-se como uma singularidade em processo, efeito da combinação sempre cambiante da multiplicidade de forças de um coletivo anônimo. Estaríamos assistindo à emergência de uma democracia em tempo real, espécie de autogestão em escala planetária?
Não é tão simples assim: é que a mesma globalização que intensifica as misturas e pulveriza as identidades, coloca em cena uma homogeneização das figuras da subjetividade, próprias para cada órbita do mercado, independentemente da origem geográfica, nacional etc: identidades globalizadas flexíveis e descartáveis substituem as identidades locais fixas que vão sendo pulverizadas.
O fato de estas identidades globais mudarem de figura numa velocidade que acompanha as mudanças de mercado não implica forçosamente o abandono da referência identitária. As subjetividades continuam, como em sua figura moderna, a ignorar as forças que as constituem e as desestabilizam por todos os lados, para organizar-se em torno de uma representação de si dada a priori, mesmo que, na atualidade, não seja sempre a mesma esta representação.
É verdade que muitos conquistam flexibilidade para adaptar-se ao mercado em sua lógica de pulverização e globalização; uma abertura para o tão propalado novo. Mas isto nada tem a ver com flexibilidade para navegar ao vento dos acontecimentos -acúmulos de relações de força formando novas tramas, que levam a subjetividade a se tornar outra, mudar de figura; tampouco tem a ver com disposição para operar esta mudança, criar figuras singulares orientadas pela cartografia destes ventos, tão revoltos na atualidade.
Abertura para o novo, em suma, não envolve necessariamente abertura para o estranho provocado por tais irrupções dos acontecimentos, nem garante tolerância ao mal-estar que isto mobiliza.
A desestabilização exacerbada, combinada com a persistência da referência identitária, acenando com o perigo de se virar um nada, caso não se consiga produzir o perfil requerido para gravitar em alguma órbita do mercado, dificulta a experiência dos vazios de sentido e valor.
Estes não são vividos pela subjetividade como esvaziamento de uma de suas figuras, efeito da proliferação de forças que a preenchem e constituem enquanto processo de produção, mas como esvaziamento da própria objetividade, como falta, relativamente à imagem completa de uma identidade.
Tais experiências tendem então a ser aterrorizadas: as subjetividades são tomadas pela sensação de ameaça de fracasso, despersonalização, enlouquecimento ou até de morte. As forças, em vez de serem produtivas, ganham um caráter diabólico; o desassossego trazido pela desestabilização torna-se traumático.
Para proteger-se da proliferação das forças e impedir que abalem a ilusão identitária, breca-se o processo, anestesiando a vibratilidade do corpo. Um mercado variado de drogas sustenta e produz esta demanda de ilusão, promovendo uma espécie de toxicomania generalizada. Mas a que drogas estou me referindo?
Primeiro, às drogas propriamente ditas, pelo menos de três tipos, fabricadas pela indústria farmacológica: produtos do narcotráfico, proporcionando miragens de onipotência ou de uma velocidade compatível com as exigências do mercado; fórmulas da psiquiatria biológica, nos fazendo crer que essa turbulência não passa de uma disfunção hormonal ou neurológica; e, para incrementar o coquetel, miraculosas vitaminas prometendo uma saúde ilimitada, vacinada contra o estresse a finitude.
Depois, outros tipos de drogas, menos evidentes, mas igualmente procuradas.
A droga oferecida pela TV, multiplicada pelos canais a cabo, o cinema comercial e outras mídias mais. Identidades prêt-à-porter, figuras glamurizadas imunes aos estremecimentos das forças. Próteses de identidade, cujo efeito dura pouco, pois os indivíduos-clones que elas produzem, com seus falsos-self estereotipados, são vulneráveis a qualquer ventania de forças um pouco mais fortes.
Os viciados nesta droga vivem dispostos a mitificar e consumir toda imagem que se apresente de uma forma minimamente sedutora, na esperança de assegurar seu reconhecimento em alguma órbita do mercado.
Há ainda a droga oferecida pela literatura de auto-ajuda que lota cada vez mais as prateleiras das livrarias, ensinando a exorcizar os abalos das figuras em vigência. Esta categoria inclui a literatura esotérica, o boom evangélico e as terapias que prometem eliminar o mal-estar, entre as quais a neurolinguística, behaviorismo de última geração.
Muito procuradas, por fim, são as drogas oferecidas pelas tecnologias diet/light. Múltiplas fórmulas para uma purificação orgânica e a produção de um corpo minimalista, maximamente flexível. É o corpo top model, fundo neutro em branco e preto, sobre o qual se vestirão diferentes identidades prêt-à-porter.
Dois processos acontecem nas subjetividades hoje que correspondem a destinos opostos desta insistência na referência identitária em meio ao terremoto que transforma irreversivelmente a paisagem subjetiva: o enrijecimento de identidades locais e a ameaça de pulverização total de toda e qualquer identidade.
Num pólo, as ondas de reivindicação identitária das chamadas minorias sexuais, étnicas, religiosas, nacionais, raciais etc. Ser viciado em identidade nestas condições é considerado politicamente correto, pois se trataria de uma rebelião contra a globalização da identidade.
Movimentos coletivos deste tipo são sem dúvida necessários para combater injustiças de que são vítimas tais grupos; mas no plano da subjetividade trata-se aqui de um falso problema. O que se coloca para as subjetividades hoje não é a defesa de identidades locais contra identidades globais, nem da identidade em geral contra a pulverização; é a própria referência identitária que deve ser combatida, não em nome da pulverização (o fascínio do caos), mas para dar lugar aos processos de singularização, de criação existencial, movidos pelo vento dos acontecimentos. Recolocado o problema nestes termos, reivindicar identidade pode ter o sentido de resistência e embarcar em tais processos.
No pólo oposto, está a assim chamada "síndrome do pânico". Ela acontece quando a desestabilização atual é levada a um tal ponto de exacerbação que se ultrapassa um limiar de suportabilidade. Esta experiência traz a ameaça imaginária de descontrole das forças, que parecem prestes a precipitar-se em qualquer direção, promovendo um caos psíquico, moral, social, e antes de tudo orgânico.
É a impressão de que o próprio corpo biológico pode deixar de sustentar-se em sua organicidade e enlouquecer, diante da velocidade e produtividade que lhe é exigida. Neste estado-limite de pânico, não basta mais apenas anestesiar a vibratilidade do corpo, tamanha a violência de invasão das forças. Imobiliza-se então o próprio corpo, que só se deslocará acompanhado.
A simbiose funciona aqui como uma droga: o outro torna-se um corpo-prótese que substitui as funções do corpo próprio, caso sua organicidade venha a faltar, dilacerada pelas forças enfurecidas.
Todas estas estratégias, tanto as que visam à volta às identidades locais, quanto as que visam à sustentação das identidades globais, têm uma mesma meta: domesticar as forças. Em todas elas, tal tentativa malogra necessariamente. Mas o estrago está feito: neutraliza-se a tensão contínua entre figura e forças, despotencializa-se o poder disruptivo e criador desta tensão, brecam-se os processos de subjetivação. Quando isto acontece, vence a resistência ao contemporâneo.
Para que as subjetividades possam fruir da riqueza de nossa atualidade, é preciso criar condições de enfrentamento da experiência dos vazios de sentido, provocados pela dissolução de suas figuras.
Só assim torna-se possível acolher o intenso movimento das forças produzido no contemporâneo, de modo a pensar o impensável e inventar possibilidades de vida.

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