São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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A 'mina' de ossos humanos dos arqueólogos espanhóis

ALZIRA BRUM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma equipe de cientistas espanhóis descobriu na Serra de Atapuerca, próxima à cidade de Burgos, um verdadeiro tesouro.
Trata-se de mais de 70% de todos os fósseis humanos do Pleistoceno Médio -período geológico compreendido entre 730 mil e 120 mil anos atrás- encontrados até agora em todo o mundo.
Vestígios dos homens que habitaram a região há cerca de 300 mil anos, esses fósseis estão permitindo pela primeira vez o estudo de uma sociedade primitiva completa. Segundo os cientistas, os ossos de Atapuerca são, entre outras coisas, a mais antiga evidência de antropofagia de que se tem notícia.
Três sítios arqueológicos estão sendo explorados na Serra de Atapuerca: "Sima de los Huesos" (em português, "abismo dos ossos"), "Gran Dolina" e "Galeria-Tres Simas". Os fósseis humanos estão em Sima de los Huesos.
Nos outros dois sítios não foram encontrados ossos, mas a presença de ferramentas de pedra indica que seres humanos estiveram ali durante o Pleistoceno Médio.
A exploração
A exploração desses sítios é feita por profissionais de diversas áreas -arqueologia, paleontologia, biologia, microscopia eletrônica e genética, entre outras-, que estudam, por exemplo, as mudanças climáticas, as formações vegetais, a evolução das faunas, o desenvolvimento e a evolução dos seres humanos, bem como suas relações com o ambiente num período de 600 mil anos.
Juan Luís Arsuaga, professor titular de paleontologia da Universidade Complutense de Madri, coordena desde 1982 as atividades de escavação e estudo em Sima de los Huesos.
Segundo ele "não há em nenhum lugar do mundo um conjunto tão completo de fósseis humanos. Foram encontrados muitos ossos do corpo, três crânios em excelente estado, mandíbulas e dentes".
Estudando esse material -um privilégio raro entre os paleontólogos, já que a imensa maioria não tem acesso a fósseis de verdade, mas apenas a moldes-, a equipe de Arsuaga vem trazendo à luz aspectos do cotidiano dos antigos habitantes da região de Atapuerca. "A partir dos ossos e dos dentes se pode saber algo, por exemplo, sobre sua alimentação", explica Arsuaga.
"As pistas que levam a crer que praticavam o canibalismo são certas marcas nos ossos, que indicam um tipo de descarnamento que não poderia ter sido produzido por outros carnívoros."
"Leakey" espanhol
Arsuaga, que vem sendo chamado por muitos de "Leakey espanhol" -uma alusão ao arqueólogo e paleontólogo inglês Louis Leakey (1903-72), pioneiro nas pesquisas sobre a evolução humana na Pré-História-, ainda vê muito trabalho pela frente.
"Se autoridades científicas e políticas nacionais e locais persistirem na proteção aos sítios arqueológicos e no apoio econômico à pesquisa, podemos esperar avanços e descobrimentos no futuro."
Entre o aparecimento dos primeiros hominídeos na África há uns 6 milhões ou 7 milhões de anos, e a substituição do homem de Neandertal pelo homem moderno -o Homo sapiens sapiens, nossa espécie- na Europa, entre 40 mil e 30 mil anos, houve um longo processo evolutivo.
As espécies humanas não se sucederam no tempo, mas foram muitas vezes contemporâneas, chegando mesmo a compartilhar nichos ecológicos. Foi o caso dos neandertais e dos sapiens, que conviveram na Europa até que os neandertais foram substituídos pelo homem moderno.
Arca de Noé
Há basicamente duas hipóteses para explicar essa substituição, apoiadas principalmente em contribuições recentes sobre a evolução humana, no estudo dos fósseis e nas teorias genéticas.
A primeira, conhecida como "teoria da Arca de Noé", é defendida, entre outros, pelo inglês Cristopher Stringer e pelo alemão Gnther Braer.
Segundo esse modelo, o aparecimento do homem moderno teria sido um evento único, ocorrido há uns 100 mil ou 200 mil anos na África e Europa, substituindo as populações autóctones.
Essa hipótese admite uma série de variações no que diz respeito à mestiçagem entre as duas espécies durante a substituição.
A segunda hipótese é chamada de "evolução multirregional" e tem como precursor o alemão Franz Weindeinreich.
Nessa versão, o Homo erectus, ou "sapiens arcaico", teria saído da África entre 1,5 milhão e 300 mil anos, chegando a diversas regiões.
A partir daí teria evoluído independentemente -o que estaria na origem das diferenças regionais. A "evolução multirregional" é defendida hoje principalmente pelos paleontólogos americanos Carleton Coon e Milford Wolporff.
Para Juan Luís Arsuaga, os fósseis de Atapuerca vêm reforçar a "teoria da Arca de Noé". "Observamos que essas populações já se pareciam com o neandertal, seu descendente na linha evolutiva e muito posterior no tempo."
Se o processo evolutivo em direção ao neandertal levou tanto tempo, é pouco provável que ele tenha se transformado em homem moderno num curto espaço de tempo, como sugere a teoria da evolução multirregional".
A voz dos fósseis
Os fósseis não falam. Idéias, crenças, um emaranhado de disciplinas -da genética à informática-, estrutura profissional, boa argumentação, financiamentos, equipamentos, opinião pública e muito trabalho, são os ingredientes básicos para dar voz a esses vestígios do passado.
Para a equipe que trabalha em "Sima de los Huesos", preparo físico foi um requisito adicional. Todos os anos, no verão, quando é realizado o trabalho de campo, os cientistas enfrentam uma verdadeira maratona atrás dos fósseis.
"Sima" é um buraco no interior de uma caverna. Durante os primeiros cinco anos de trabalho para ter acesso aos fósseis, os cientistas tinham de percorrer 500 m se arrastando por passagens estreitíssimas.
Ensopados e cheios de lama, chegavam a um abismo de 13 m de profundidade, ao qual desciam por uma espécie de escada. No fundo, uma pequena rampa e um buraco sem luz e quase sem oxigênio, onde três pessoas não podiam respirar ao mesmo tempo. Ali estavam os fósseis.
Pegar e levar? Não. Um fóssil não serve para nada se não está na sua posição original, pois não pode ser datado nem relacionado com os demais fósseis ao seu redor.
Os cientistas precisam retirar e transportar os fósseis junto com terra e pedras. Na Serra de Atapuerca, esse processo significava para os cientistas subir várias vezes ao dia com mochilas que chegavam a pesar 20 kg.
Hoje as condições de trabalho já são melhores. Uma espécie de guindaste permite retirar os fósseis para fora da caverna.
Os cientistas usam roupas especiais, impermeáveis, além de usarem sofisticados equipamentos.
Uma vez retirados, os fósseis devem ser identificados, datados, montados e estudados em todos os seus detalhes. Depois os cientistas têm de escrever artigos para revistas e jornais especializados, participar de debates, congressos e conferências em todo o mundo para apresentar e discutir suas descobertas e hipóteses.
A equipe de Atapuerca, com cientistas espanhóis, ainda precisa impor seu trabalho frente a colegas de países com mais tradição e maior número de profissionais nas suas áreas de estudo, como EUA, Alemanha e Reino Unido.
O trabalho não pára por aí. O público é um ingrediente fundamental para o êxito de uma teoria científica. Para ele se dirige a divulgação científica.
Artigos sobre as pesquisas de Atapuerca estão saindo em jornais e revistas de todo o mundo, como "National Geographic", "Sciences et Avenir" e "Archaeology".
E, como não só de papel vive a divulgação científica, Atapuerca já está no mundo das imagens. Ainda este ano será exibido um documentário sobre o assunto dirigido pelo cineasta Javier Trueba, que acompanha passo a passo o duro trabalho dos cientistas.

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