São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Moral flutuante

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Consta que em algum lugar de Paris está enterrado o metro de platina que mede exatamente a décima milionésima parte de um quarto de um meridiano terrestre. Nunca tive interesse pessoal ou profissional em verificar se realmente existe esse metro. E, no caso de existir, se ele realmente mede a décima milionésima parte de um quarto do meridiano terrestre.
Apesar de tudo, sinto-me reconfortado em saber que ele existe. E dou de barato que sua medição é correta. E ainda bem que está em Paris, em lugar prudentemente guardado e vigiado por técnicos internacionais.
Não ficaria muito tranquilo se tal metro estivesse enterrado em algum ponto dos 8,5 milhões de quilômetros quadrados de um certo país que conhecemos. Teríamos seguramente um metro do governo, outro da CUT, um da CNBB, outro da OAB, além do metro da Rede Globo e outro da Fundação Getúlio Vargas.
Sem falar nos metros avulsos de particulares e demais interessados, que dariam um jeito de calcular distâncias e mercadorias pelo quarto da milionésima parte do meridiano terrestre de sua preferência.
Isso não quer dizer que somos um povo leviano, cidadãos de um país debochado. Somos até sérios demais. No tempo em que os outros é que escreviam a nossa história, foi dito que nossos ancestrais comeram o bispo Sardinha. Rico em proteínas e sais minerais, o piedoso e sacrificado epíscopo inspirou o movimento antropofágico, mas parece que não inspirou mais nada. De alguma forma herdamos as suas qualidades e virtudes, e certamente metabolizamos suas calorias.
Não é qualquer povo que pode se orgulhar das calorias de um português e das virtudes de um bispo, simultaneamente lançadas no fluxo sanguíneo da raça. Por isso mesmo, temos imaginação abrangente, incapaz de acreditar na milionésima parte de um quarto do meridiano terrestre. Daí que nossas medidas são mais flutuantes.

Texto Anterior: Sonho peemedebista
Próximo Texto: Tudo pelo social?
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.