São Paulo, segunda-feira, 20 de maio de 1996 |
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Um vídeo muito doido expõe o Carandiru
FERNANDO GABEIRA
Não há nenhuma imagem do que passa na cabeça deles. O que seria? Campos floridos, a praia, barulho de ondas, a namorada nua? Como separar o Carandiru do cheiro insuportável dos 111 mortos, assassinados covardemente nos pavilhões, os mesmos mortos que a Justiça chegou a considerar culpados pelo massacre? O que fazer com eles, agora? Exumá-los e aplicar a pena de 30 chibatadas em seus esqueletos? Os assassinos tomam cerveja e comem churrasco aos domingos. Os sobreviventes puxam fumo e cheiram cocaína. É preciso voar dali. Se é difícil morar no país onde houve o massacre do Carandiru, o que não seria morar lá dentro convivendo com fantasmas e horrores aprisionados nas paredes? No Carandiru, homem com homem. Eles se casam, por bem ou por mal, se beijam na boca e sentem, como o personagem de Sartre, o gosto de bife cru. No Carandiru, as galerias sufocam os gritos. Corre, ignorado por todos, um subterrâneo filete de sangue, esperma e cuspe. Cerca de 20% dos presos têm Aids e, em breve, políticos e empreiteiros discutirão a concorrência pública para o pavilhão dos terminais, metáfora do sistema penitenciário brasileiro, onde você entra e não deixa apenas a esperança na porta ou os objetos pessoais na carceragem: você deixa a expectativa de vida. O que fumam no Carandiru? Manga rosa, kashimir, afgã, marroquino? Enquanto não constroem o pavilhão da sua morte, é preciso cavar a fuga, com as pás e as unhas, construir túneis dentro d'água, vencer barreiras e acabar na rua. O desespero produz o milagre da engenharia. Quem partiu, partiu, quem ficou, ficou. Resta fugir no anel de fumaça, cada tragada um milímetro de liberdade. E a fumaça entra pelos lares de domingo, pelos pratos sujos na cozinha, percorre o retrato dos antepassados, o diploma dos meninos, o troféu da gincana; a fumaça entra pelas pernas da tia solteira, pela casinha do cachorro. Quem são esses malucos do Carandiru que se fundem com o ET de Varginha no fantástico show da televisão? Todos voam, têm os olhos vermelhos, injetados, e passam céleres pela nossa sala. O que fazem durante os intervalos comerciais? Continuam fumando seus baseados, cheirando suas carreiras, ou têm camarins especiais onde aguardam o número do trapezista chinês para reaparecerem diante das câmeras? Nossos humoristas podem entrevistá-los no pátio do presídio onde aterrissa também o ET de Varginha: "Meu irmão, você não tem medo de fugir do Carandiru e ficar preso no trânsito engarrafado?". O ET de Varginha acende duas luzes sobre suas antenas, os presos dão mais uma tragada. No planeta Carandiru daqui a pouco cairá a noite ou ouviremos apenas os gemidos de amores dolorosos, a sinfonia seca de cavernosos pulmões. Nossos repórteres, amadores ou não, deixaram esse impressionante documento para a posteridade: homens fumando num pátio, muita fumaça, as autoridades, onde estão as autoridades? Olhem o ET de Varginha escapando pelo telhado. Por que fumam os homens, por que atravessam galáxias para nos visitar num domingo à noite? Mistérios insondáveis que só podem ser explicados por gurus, videntes, parapsicólogos. José Armani e Lili Chanel, os apresentadores, nos garantem apenas que a semana será de tempo bom com nebulosidade e chuvas ocasionais no período. E entram os artilheiros chutando forte, mandando nossas inquietações para o fundo das redes. Todo domingo, eles fazem os mesmos gols; semi-adormecidos, temos a impressão de que já vimos aquilo, ou que sempre vimos aquilo, que a nossa vida toda foi essa macarronada, futebol, o perigo de um novo vírus e um videoclipe no meio. Não há como fugir cavando túneis, nem acionando nossa nave espacial. Estamos todos presos, esperando o próximo programa. E respiramos aliviados, pois, afinal, pimenta no Carandiru dos outros é refresco. Texto Anterior: As atrações principais Próximo Texto: Ensaios trazem gênese do feminismo Índice |
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