São Paulo, terça-feira, 21 de maio de 1996
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Cada governo tem Jornal Nacional que merece

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Alguma semelhança há entre a nova cara do "Jornal Nacional", da Rede Globo de televisão, e a recente proliferação da rede de videolocadoras Blockbuster pelas ruas de São Paulo.
São dessas coisas que vão surgindo com tal velocidade, por trás de tão bem guardados tapumes de construção, que o indivíduo não se dá conta. Quando menos espera, estão lá, intrometidas na paisagem.
Um amigo horrorizou-se com a invasão de lojas Blockbuster na cidade, automatizadas, enormes, ocupando quarteirões inteiros --"Blockbuster", em inglês, significa "bomba arrasa-quarteirão"- e cujas fachadas são vitrinas em amarelo e azul, escandalosamente iluminadas e sortidas.
"É uma espécie de supermercado do vídeo, de McDonald's do filme", ele observou, com o agravante de não haver um único filme pornográfico na atmosfera anti-séptica, hospitalar, da rede Blockbuster. "Do mesmo modo que não há pimenta na comida do McDonald's", deduzi.
A associação com o "Jornal Nacional" veio também por acaso, num insight vagabundo, obtido do ato inútil de apertar um botão de controle remoto. Quase mudei de canal, estranhando não encontrar o rosto de Cid Moreira no que deveria ser o "JN". Feito camundongo condicionado há décadas à cara amarfanhada de Moreira na tela, senti falta.
Mas logo lembrei que o "JN" estava novo -modernizou-se, adaptou-se ao neoliberalismo do governo Fernando Henrique. Aos tempos do bem-apessoado FHC, serve o locutor William Bonner e sua cara de modelo de comercial de loção pós-barba. Com ele, entra Lilian Witte Fibe, mera reprodutora de matéria editada, mas cujas expressões de mau humor dão-lhe imagem de mulher-âncora, cheia de opinião.
É a mão de cal politicamente correta que passaram no telejornal -também enfiaram lá um mulato para conduzir as macacoas dos efeitos eletrônicos do mapa do tempo. A exposição dura breves segundos, tempo que cabe a mulatos (sem qualquer voz política) na televisão da elite branca.
Por fim, o "JN" ganhou ares de intelectual, como o presidente. Criou um comentarista (Arnaldo Jabor) de centro. Afinal, da mesma forma que não há pimenta no McDonald's ou pornografia na Blockbuster, não há esquerda na Globo.
O intelectual do "JN" faz no ar uma mistura de sub-literatura de novela com jornalismo piegas à la "Fantástico" (à la Affonso Romano de Santana dos anos 80). Seu discurso é saneado (ou censurado) e pronto para se retificar quando advertido por ordem superior do PFL.
Ora, cada governo tem o Jornal Nacional que merece. A Blockbuster e o novo "JN" são os frutos materiais da "modernização" brasileira. Operam na linha da falsa democratização da abundância e da informação. Participam da cruzada montada pelos liberais da classe média alta para sanear a sociedade -já que não lhes interessa alterar a ordem econômica das coisas- censurando tudo, do vício do fumo a pornografia e "discurso hostil", como disse o sociólogo americano Christopher Lasch.

E-mailmfelinto@folha.com.br

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