São Paulo, sexta-feira, 24 de maio de 1996
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Programa de Casé resgata os 'populares' do Brasil

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não podia ser melhor o nome do programa que Regina Casé apresenta mensalmente na Globo: "Brasil Legal". Nesta última terça-feira, o programa tinha como tema os ônibus do Rio, seus passageiros, motoristas e cobradores. Foi muito "legal".
Com o espírito totalmente à vontade, com uma mistura de carinho e gozação que só ela sabe fazer (muito mais carinho que gozação, aliás), Regina Casé ia entrevistando aquelas pessoas que, no jornalismo antigo, atendiam pelo nome de "populares".
"Muitos populares acorreram ao local", dizia, por exemplo, a legenda de uma foto sobre liquidações na casa Sloper, ou de um acidente na frente do edifício da Pirani.
Eis que os "populares" estão de volta no programa de Regina Casé. E que espontaneidade, que encanto, que bem-estar nessas entrevistas!
Regina Casé não segue nenhuma pauta predeterminada. Pega um ônibus e, por exemplo, encontra uma moça que vai ter aula de espanhol. Dali a pouco, estamos na classe, vendo a aula.
A apresentadora conversa com um motorista de ônibus. Logo entramos na casa dele, vemos sua mulher, ficamos sabendo como se conheceram etc.
O programa de Casé parece selecionar, dentre os muitos anônimos que foram entrevistados, as personagens mais interessantes.
Uma cobradora de ônibus, produzidíssima, de batom e rímel, dá shows diante da câmera. Claro que Regina Casé já chega falando: "Que linda essa sua maquiagem! Você sempre vai trabalhar assim, tão produzida?"
Pouco importa se Regina Casé acha de fato linda a maquiagem de sua entrevistada. O clima se estabelece para confidências, auto-afirmações, euforias, beijinhos e abraços.
É como se o velho mundo de Hebe Camargo fosse restituído ao lugar de onde partiu. Hebe sempre fez o gênero "que gracinha" ao tratar com sumidades, ministros, literatos, sacerdotes. Regina Casé devolve o gênero às classes populares, entrevistando-as.
Os efeitos são espetaculares. Eis aí o brasileiro e a brasileira comuns, repletos de sensualidade, de alegria. Que Brasil legal, de fato. E que povo feliz, espontâneo etc. Coisa de Darcy Ribeiro, mais que de Gilberto Freyre, pois no Brasil de Freyre havia alguma sombra de perversidade, de decadência antropológica, de refinamento alexandrino e de experiência química em sua apologia da mestiçagem.
Já em Darcy Ribeiro, o "povo brasileiro" é mais vital, eufórico, presta-se a megalomanias de Sambódromo. Curiosamente, a Globo e Darcy Ribeiro, dois adversários notórios, encontram-se nesse programa.
Claro que toda prudência recomenda que não se tome "a Rede Globo" como uma entidade unívoca, como uma instituição monolítica.
Guel Arraes, que dirige "Brasil Legal", assim como "A Comédia da Vida Privada", tem talento e senso da realidade televisiva muito superiores à pasmaceira pseudotexana, ao engravatamento sarneyzista, à bem-amada eletrodomesticação que sempre caracterizaram a emissora.
Mas devemos analisar mais de perto "Brasil Legal". O fato de confirmar as teses de Darcy Ribeiro sobre o caráter nacional e o fato de ser um programa ótimo de ver não esgotam o assunto.
Não vou ser chato a ponto de dizer que um programa chamado "Brasil Real", por exemplo, mostraria situações muito mais dramáticas e dilemas seriíssimos, que "Brasil Legal" não está interessado em destacar.
O problema é outro. Sirva como exemplo o caso de um motorista de ônibus, feliz da vida e realizadíssimo individualmente, que de passagem conta a Regina Casé que só dorme três horas por dia.
O mínimo que se poderia esperar é um sujeito mal-humorado, que trouxesse no íntimo os germes de uma rebelião por melhores condições de vida. Não é isso o que se mostra em "Brasil Legal"; e não porque o programa seja alienante ou falseie os fatos.
O bom humor, a alegria dos entrevistados tampouco se deve, ao fato de estarem felizes porque participam de um programa de televisão.
Qualquer um percebe a diferença entre os sorrisos ocasionais dos pobres numa reportagem de noticiário e aquilo que aparece no programa "Brasil Legal": uma espécie de autoconfiança, de exibicionismo, de esculacho, que só estava esperando a câmera da Globo para ser filmado.
Procurando evitar ranços esquerdistas e assentimentos de direita frente ao que ocorre no país, eu diria apenas o seguinte: parece haver, na sociedade brasileira, válvulas de escape para a frustração material, para a gritante injustiça, para o absurdo em vigor, que o racionalismo sociológico talvez desconheça.
Sempre achei que, se não há nítida vocação revolucionária na população brasileira, apesar de todas as diferenças sociais, isso se devia ao fato de que, no conjunto, há esperanças de melhoria material ao longo das gerações.
Isto é, o miserável sertanejo vem para São Paulo, seu filho arranja um emprego qualquer e seu neto entra numa faculdade -de modo que o jogo, embora pouco favorável do ponto de vista individual, surge como compensador a longo prazo, tornando menos sedutoras, e mais arriscadas, as promessas de uma ruptura completa com o sistema.
Mas não é só isso. A relativa liberdade sexual, o saber-se desejável que há em qualquer passista de escola de samba, por exemplo, funcionam como mecanismos "contra-revolucionários", se me é permitida a expressão. Não é à toa que todo militante bolchevique fazia questão de certa dose de puritanismo sexual.
Indo adiante: o que os entrevistados de "Brasil Legal" demonstram é uma alta tendência a "privatizar" a própria vida. Ou seja, o que conta é minha felicidade individual, o fato de "eu ser mais eu". Ou, como diz um adesivo de automóvel, "só de ser brasileiro, eu sou feliz".
Não são, portanto, autômatos e lobotomizados à moda de George Orwell, inconscientes da opressão que sofrem. Deslocaram seus objetivos de vida para outro campo, que não é o das melhores condições de trabalho, do aperfeiçoamento político, da mudança social. Claro que isso ocorre; claro que qualquer um dirá que o salário é baixo. Mas se deixam mobilizar por outra coisa.
Qual coisa? O consumo de quinquilharias, por exemplo; esmaltes de unhas, óculos escuros. O consumo em crediário -e o crediário é um dos fatores mais importantes na psicologia do conservadorismo popular. E, last but not least, a própria Rede Globo -que ensina, nas suas novelas, que o mais importante é a realização individual, a felicidade íntima, a afirmação de cada um tal qual é.
Nos sorrisos, abraços e alegrias de "Brasil Legal", vêem-se populares felizes. Vêem-se, também, produtos da Rede Globo. Só em parte produtos da Rede Globo, é verdade; são também produtos do Brasil como um todo.

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