São Paulo, sexta-feira, 24 de maio de 1996
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A desmedida do governo

JOSÉ GENOINO

Começo este artigo dizendo que tenho consciência de que não posso ser acusado de ser um oposicionista radical contra o governo. Pelo contrário, defendo no PT uma postura oposicionista que leve em conta a crítica, a fiscalização, mas também o diálogo e a apresentação de alternativas. Procuro pautar minha ação política pela ética da responsabilidade, tão cobrada da oposição pelo filósofo-amigo do presidente José Arthur Giannotti.
Essa postura política exige, neste momento, que se constate que o governo perdeu todo o senso de proporção, toda a medida do razoável. Refiro-me à nova rodada de concessões fisiológicas patrocinada pelo governo com a retomada da votação da reforma da Previdência. O pior de tudo é que, além de ceder às pressões, o governo nem sequer consegue assegurar o apoio necessário, como provam as últimas votações. Não se trata de um episódio isolado, mas de uma prática recorrente. As concessões que o governo faz aos vários grupos extrapartidários, especialmente aos ruralistas, sinalizam que ele é suscetível a todo tipo de pressão e prisioneiro das demandas fisiológicas de sua base parlamentar.
O fisiologismo no atual governo mudou de forma em relação ao praticado no governo Sarney e à corrupção do governo Collor. Não se trata da troca de apoio por cargos ou da cobrança de propinas dos empresários em troca de benefícios do Estado. O fisiologismo do governo FHC acoberta-se sob a aparência de legalidade conferida por um instrumento arbitrário e antidemocrático: as medidas provisórias.
Agora estão em jogo bilhões de reais concedidos a grupos particulares que se articulam no Congresso para impor novas formas de privatização do Estado. O governo confundiu a mera apropriação de recursos públicos, por meio de barganha política, com pressão política legítima. O fisiologismo implica uma relação em que o governo obriga-se, a cada votação, a recontratar o apoio de seus aliados.
Políticos e intelectuais governistas assumem o discurso cínico de que na democracia o jogo da barganha é algo normal. Perde-se de vista qualquer critério de universalidade e de justiça na prática da política democrática. Outros argumentam que os benefícios -a aprovação das reformas- serão maiores que os custos -a compra do apoio. Isso equivale a legitimar práticas ilegais em nome de incertos benefícios futuros. Equivale a justificar quaisquer meios em nome de fins duvidosos.
Tudo isso não ocorre por acaso. O governo do PSDB emprestou uma ilustração acadêmica à dominação predatória das elites. Agora, o velho assalto patrimonialista da coisa pública vem rubricado com o discurso intelectual e com o aval das MPs reeditadas ao sabor do tráfico de influência, sem que os parlamentares possam se manifestar.
Quando se trata dos problemas sociais, o governo pede paciência; quando se trata da "coisa nossa" das bancadas de interesses, o governo age com urgência. Quando se trata dos "de baixo", dos servidores públicos, dos sindicatos, o governo os acusa de corporativismo; quando se trata dos "de cima", dos banqueiros, o governo alega agir em nome do "interesse público". Quando se trata da reforma agrária, não há dinheiro; quando se trata dos ruralistas, há o pronto-socorro do Banco do Brasil, mesmo que quebrado.
O governo transformou o mérito da estabilização econômica em carrasco do social e em avalista da concessão de benefícios a fraudadores e a inadimplentes irresponsáveis. Transformou a necessidade das reformas em licenciosidade com o dinheiro público, em festa fisiológica para as elites. Enquanto a sociedade é sacudida por uma sucessão de tragédias e de chacinas, o governo se omite de governar. Limita-se a administrar um plano econômico, em nome do qual abandonou todas as outras iniciativas. Promete refundar o Estado com as reformas, mas abandona o Estado presente à inércia da decomposição. O Estado não age, não fiscaliza, não administra e não executa.
É preciso pôr um basta no macrofisiologismo. É preciso que o governo pare de prometer uma coisa e fazer o seu contrário. É preciso que o realismo cínico seja substituído por um mínimo de coerência e de respeito à opinião pública. Ainda há tempo de o governo mudar de rumo, abandonar a lógica elitista que assumiu. Caso contrário, este governo, que foi agraciado com uma imensa boa vontade da sociedade, verá sua credibilidade destruída pela falta de senso de proporção. Infelizmente, já surgem sinais de que quem pagará o preço da irresponsabilidade de forças políticas que atuam no governo e no Congresso serão as instituições democráticas.

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